Marcelo Mirisola

A transgressão e o sagrado, numa relação que ora se conflitua, ora se concilia, caracterizam a escrita (a obra) de Marcelo Mirisola. Como em Georges Bataille, que venera. A transgressão naquela exata medida da insanidade, do obsceno, da ousadia para dizer tudo, mesmo que plangente e bárbaro. O sagrado, na medida da singularidade da narrativa, do domínio da linguagem, da erudição do estilo, mesmo que em discrição, sem o menor exibicionismo. Há nos seus livros uma voz gritante que o autor define a braços com um árduo trabalho, uma rotina oficinal de quem dá aos próprios livros a sua maior identidade. Chego à sua existência, numa daquelas ironias, quando ouço a notícia da morte de André Jorge, o cofundador da Livros Cotovia que, negociando com a vida os seus últimos dias, se detinha a editar os últimos livros: Bangalô e O Azul do Filho Morto, de Marcelo Mirisola. Dois títulos que mostram o quão arrebatadora é a sua escrita de lá e de cá do Atlântico, num registo contemporâneo que desestabiliza, numa narrativa que desconcerta. Mas é justamente o tom mercurial que me suscita a curiosidade. No Brasil, onde nasceu em 1966, Marcelo Mirisola atrai permanentes controvérsias. É um crítico lancinante da própria classe literária em que se insere e, por isso, fica de fora dos circuitos literários convencionais. Porque Marcelo Mirisola não é convencional. Há dias, recebo uma mensagem privada de Marcelo Mirisola, sim, de Marcelo Mirisola, dizendo que tinha tomado a liberdade de partilhar o meu texto aqui divulgado sobre Bangalô. Num jeito meigo e educado, contrastante com a sua linguagem literária. Pedi-lhe, na volta da resposta, esta entrevista. No mesmo segundo, recebi um sim. Que trago para todos.

Começou por querer publicar contos, mas no Brasil da década de 1990 ninguém os quis levar à estampa. A sua persistência, porém, levou-o a celebrizar-se como escritor, inclusive com contos na lista bibliográfica. Mas é em relação a dois dos seus romances – aqueles que temos publicados em Portugal – que emprega o termo genialidade. Porque se refere a Bangalô e O Azul do Filho Morto como geniais?  

Depois que publiquei meus dois primeiros livros de contos, em 1998 e 2000, respetivamente, a porteira abriu, escancarou-se. Se você for pesquisar vai ver que Fátima fez os pés para mostrar na choperia inflamou o mercado. Nos anos seguintes, as editoras apostaram no gênero (que estava datado, sim) e surgiram dezenas de contistas. Muitos dos que desfilam as soberbas nas feiras de hoje esquecem disso, ou fingem esquecer. Com relação a genialidade, bem, diante do circo de horrores e do ambiente pestilento que a literatura enseja, e depois de tanta negligência e maus tratos, você não acha que eu mereço – no mínimo – me afagar? Se eu não fizer isso… quem vai fazer por mim?

N’O Azul do Filho Morto, como em Bangalô, critica à exaustão a classe média brasileira. Essa classe média que o estimulou a escrever ainda existe? Ou temos agora um Brasil diferente?

Sim, graças a Deus e a Virgem de Fátima, tudo o que fiz, e tudo o que sou devo a classe média – sobretudo minha devoção ao inexplicável e ao sobrenatural. E, hoje, a classe média está mais ridícula e oprimida do que nunca, pode ter certeza de que a próxima revolução brasileira (como todas as outras do passado) virá do pau mole, digo, da classe média.  

 

A voz intransigente, reivindicativa e zangada que atribui aos narradores de ambos os livros é autobiográfica? Ou carrega a intransigência, a reivindicação e a zanga de muitos brasileiros em igualdade de circunstâncias?  

Brasileiro em geral é frouxo. Essa zanga só existe em algumas bolhas, agora no feicebuque. Ou seja, é tudo ilusão. No meu caso, a ficção é instrumento de trabalho e se adapta perfeitamente a ilusão e mentira generalizadas – mais do que nunca estou na moda.  

Fala da memória como a sua grande ferramenta, a sua matéria-prima por excelência. N’O Azul do Filho Morto, diz que há, para além do exagero, memória e cronologia… Que impacto tem o tempo (ou a memória sobre o tempo) na capacidade de escrita? Como evoluiu Marcelo Mirisola?

«A lembrança na parede é o quadro que dói mais», como disse o recém-falecido Belchior. Poderosíssimo instrumento de trabalho e o que dói mais também. A propósito: as pessoas deviam avaliar o Alzheimer do ponto de vista de quem vai, e não de quem fica, a perda da identidade como um bem, e não como um mal.

Literatura é um amigo que o pega pelo braço e lhe conta uma história que o agrada. Se dependesse de mim, Borges, por exemplo, seria meu amigo.

A partida do cofundador da Livros Cotovia, André Jorge, significou um enorme empobrecimento na edição de livros em Portugal. Ele era um visionário, ele arriscava como ninguém, como fez consigo. Que lembranças guarda dele? Como foi a vossa relação?

Guardo o brilho nos olhos e o sorriso de coelho, ele me contava, cansado mas visivelmente satisfeito, os esporros que era obrigado a dar no agente funerário. Como ele gostaria de ser enterrado, a cruz que não deveria acompanhá-lo no caixão. Ele mesmo deu cabo da própria morte (a editou). Também lembro do choque de André quando trocamos as primeiras palavras, e revelei que desejava conhecer o Santuário de Fátima. Deve ter pensado: ah, o último autor que edito é um carola maluco, estou ferrado. Mas logo em seguida falamos sobre Léo Ferré, e ficou tudo bem. Demos boas gargalhadas juntos.

A provocação é uma consequência, não é, digamos, um “efeito especial” elaborado para desconcertar. Vem no bojo, entende? Como se fosse uma variante numa equação. Acontece naturalmente, a pedrada flui como afago.

Que olhar é que o escritor Marcelo Mirisola, editado em Portugal, tem da literatura portuguesa? Que autores portugueses leu?  

Tentei ler Mia Couto e achei chatíssimo. Talvez mais chato que Saramago. Gosto bastante de Lobo Antunes e de Carlos de Oliveira – avalio que Abelha na Chuva é uma obra-prima. Li Pessoa e Sá Carneiro na época errada e tenho acompanhado Agualusa como cronista – muito bom. Li pouca coisa de Cardoso Pires e gostei. Ah, sou fã de Antonio Tabuchi, não importa que é italiano, o leio como se fosse português. De memória, agora, acho que só. Confesso que estou em falta com a literatura portugesa.

Para lá do seu vernáculo, da sua transgressão, da sua obscenidade, há um domínio da língua e uma erudição que vislumbramos e que nos dizem que Marcelo Mirisola não é “apenas” um provocador. O seu estilo desconcertante é a sua principal mensagem? O seu personagem principal? 

A provocação é uma consequência, não é, digamos, um “efeito especial” elaborado para desconcertar. Vem no bojo, entende? Como se fosse uma variante numa equação. Acontece naturalmente, a pedrada flui como afago. E sobretudo não existe provocação gratuita. Daí o estrago soar verdadeiro.

 Escrever é ir além dos sintomas. Um bom escritor é aquele que transcende os sintomas. Por isso que os bons autores não morrem, a morte não passa de um sintoma a ser ultrapassado.

Parece conseguir chegar à transgressão, leia-se independência de pensamento, ironicamente, pelo domínio que tem da língua. Esse domínio é uma condição sine qua non do (bom) escritor? O que é para si um bom escritor?

Sempre digo: se pensar mal vai escrever mal. Sim, liberdade de pensamento em primeiríssimo lugar: é condição sine qua non para ir além. Se você tiver qualquer compromisso com dogmas, ideologias, causas justas ou injustas (tanto faz) fatalmente irá se contaminar com esses “entraves” e não descobrirá nada de novo. Escrever é ir além dos sintomas. Um bom escritor é aquele que transcende os sintomas. Por isso que os bons autores não morrem, a morte não passa de um sintoma a ser ultrapassado.

Descreve os escritores como caretas, solitários, meninos bem comportados e ávidos da aceitação do público e da recetividade dos críticos. Como consegue ser escritor e, ao mesmo tempo, distanciar-se dessa atividade e critica-la?

Eu simplesmente não tenho outra opção.

Reconheço a grandeza de Clarice, de Guimarães Rosa, de Joyce, de Saramago, mas não tenho afinidade alguma com eles. Não ficaria a vontade tomando um porre com essas figuras, entende?

Sempre foi leitor dos melhores escritores. Inclusive brasileiros. Porque não tem afinidade com Clarice Lispector, considerada uma das autoras incontornáveis do século XX? (nota: esta é uma curiosidade muito, muito minha, que leio e releio Lispector…)

Você usou a palavra mágica: afinidade. Tudo uma questão de afinidade. Caminhamos pela vida ao lado daqueles que têm afinidade connosco, por que seria diferente com a literatura? Reconheço a grandeza de Clarice, de Guimarães Rosa, de Joyce, de Saramago, mas não tenho afinidade alguma com eles. Não ficaria a vontade tomando um porre com essas figuras, entende? Não seriam meus amigos. Literatura é um amigo que o pega pelo braço e lhe conta uma história que o agrada. Se dependesse de mim, Borges, por exemplo, seria meu amigo.

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O escritor é um observador, por excelência, da evolução da sociedade, dos ciclos da história, da essência da política… Como é que o seu olho brasileiro, com a distância que o Atlântico lhe dá, descreve esta Europa crepuscular em que atualmente vivemos?

Quando estive em Lisboa senti o bafo de Paris, a sensação de que a qualquer minuto a cidade poderia explodir, ir pelos ares. Meu falecido amigo Paulinho de Tharso dizia: a Europa vai virar geléia. Sabemos apenas que o sangue é material dessa geléia, não sabemos quais os outros componentes, o tempo dirá.  

Eduardo Lourenço, considerado unanimemente um dos maiores pensadores/filósofos vivos em Portugal, com uma experiência de residência em Salvador da Baía, defende que «o mundo real começa quando saímos de nossa casa para encontrar os outros». Que visão constrói do seu Brasil sempre que, literal ou simbolicamente, se afasta de casa?

Estou morando no Rio de Janeiro. Faz trinta anos que não faço outra coisa senão me afastar de casa. Virei especialista. E o que eu digo para quem se preocupa com a violência e a decadência da cidade, é a mesma coisa que direi a você, e que pode ser usada em qualquer cidade do Brasil e do mundo: Se Flaubert era Bovary, a bala perdida sou eu.   

E como descreve… Marcelo Mirisola?  

Exatamente dessa maneira: a bala perdida.

Marcelo Mirisola

           

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