Coloquial. Autêntico. Bonito. São, de uma assentada, os adjetivos que me ocorrem a propósito de Devoção, o livro que acaba de chegar a Portugal, com assinatura de Patti Smith. A estrela norte-americana que se celebrizou pelo rock’n’roll na década de 1970 e que, numa ultrapassagem veloz ao seu tempo, levava então às suas músicas a boa contaminação da poesia. Hoje, com esta fantástica Devoção, Patti Smith faz uma reflexão sobre o processo criativo, o seu e no limite o de todos os artistas. Numa interrogação profunda sobre por que escrevemos?, a artista musical e visual, também escritora, leva-nos embutidos numa viagem pela sua escrita que contempla e interpela e faz com que, na mesma medida, contemplemos e interpelemos.

«A inspiração é um mistério recorrente e invisível», diz. Entramos verdadeiramente no seu testemunho sobre a criatividade e a inspiração quando a ouvimos relatar a sua viagem ao sul de França rumo à casa de Camus, no seu encontro com a sepultura de Simone Weil no cemitério de Ashford, na periferia londrina, ou nas labirínticas ruas da Paris de Patrick Modiano, para ficar perto dos lugares por onde os grandes haviam andado, dormido, escrito. Admiradora copiosa de Modiano, refere «(…) que perdermo-nos no torpor estimulante do universo de Modiano é quase como escrever». Também a Weil se dirige em constante devoção: «Brilhante e oriunda de uma classe privilegiada, ela percorreu todos os grandes espaços da erudição, renunciando a tudo para enveredar por um caminho difícil onde se juntaram revolução e revelação, serviço público e sacrifício». Patti Smith referiu-se a vários destes lugares por onde passou nesta deambulação como «(…) um poema à espera de ser escrito».

No seu itinerário partilhado com o leitor, Patti Smith destapa a privacidade dos momentos em que, em cafés e a bordo de comboios, entre cidades, esgrime apontamentos e ensaia literatura. Que cumpre, como no palco. Como Patti Smith constitui uma das artistas mais inspiradoras e desafiantes desta nossa contemporaneidade, este livro, enquanto testemunho do processo criativo da escritora, torna-se matéria-prima fundamental para os amantes da escrita e da reflexão sobre a escrita.

Pelo meio, surgem pequenas histórias entrelaçadas: uma patinadora ambiciosa que passa a ser seguida por uma treinadora sagaz; um colecionador em busca do seu prémio; e uma relação caldeada por uma necessidade maior. E nestas zonas do livro encontramos aguçada a ferroada da inteligência de Patti Smith. Que nos impressiona pela multidisciplinaridade da sua intervenção artística.

Depois do seu itinerário narrativo, volta ao ponto de partida: «Por que razão nos sentimos impelidos a escrever?». E dá uma resposta, previsivelmente, genial: «Para procurarmos o isolamento no interior de um casulo nosso, absorvidos numa solidão que é alheia às necessidades dos outros». Ainda sobre por que razão escrevemos, a escritora que esteve sentada na cadeira de Camus, remata: «Porque não nos podemos limitar a viver». E, se a escrita for um sonho, como o é para Patti Smith, escrever consiste numa «(…) prova, através de uma determinada maneira de usar as palavras, de que Deus existe». E Patti Smith podia ter escrito apenas isto.

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