Ganhou na adolescência a certeza de que estariam nos livros os verdadeiros segredos da vida. E vida fora tem levado por diante essa convicção, comprovando-a nos livros, sim senhor, e também nos retratos dos seus escritores, de que é autor. Foi semeando votos de confiança de autores um pouco por todo o mundo. Não queria acreditar quando, ainda um jovem, fotografou uma das sumidades que a literatura contemporânea havia de consagrar: Jorge Luis Borges. Desde aí, têm sido todos os que possamos imaginar, portugueses, muitos, incluídos. Falo do argentino Daniel Mordzinski, cuja exposição, Objectivo Mordzinski – Uma viagem ao coração da literatura ibero-americana, podemos ver na Casa da América Latina.

Quando entramos na sala rasteira da belíssima Avenida da Índia, onde se encontram reunidas as fotografias dos autores estrangeiros (estrangeiros, para nós, portugueses), o nosso olhar é imediatamente puxado pelo retrato de Borges, um cego destacado numa mancha a preto e branco, com perfil respeitoso, retilíneo e com a pose refletida de quem sobrepõe uma na outra, as suas mãos. Esta é a fotografia inaugural de Daniel Mordzinski, a tal que tirou quando jovem, corriam-lhe os 18 anos, na qualidade de estudante estagiário que trabalhava num filme acerca do escritor argentino. Estava então instalado o ano de 1978, que trazia em seguida a ditadura militar na Argentina, a mesma que levou Daniel Mordzinski com menos de 20 anos a rumar a Paris.

Prosseguimos e damos de caras com dois Nobel da Literatura cuja relação, nem sempre pacífica, tem feito correr tinta nos jornais de lá e de cá do Atlântico: Gabriel García Márquez e Mario Vargas Llosa. E como ambos parecem, ali, eles próprios, as personagens de um livro, materializando o mapa de intimidade que o fotógrafo argentino tão bem dedilha entre a sua máquina e cada retrato acabado. A história continua e de novo esbarramos com outros dos nomes mais lidos da literatura, como Julio Cortázar, Eduardo Galeano, Camilo José Cela, Luis Sepúlveda ou Alberto Manguel. Pelo meio, na mesma sala, vemos uma vitrina que nos transporta para os utensílios de trabalho de Daniel Mordzinski, com rolos de fotografia a fazer lembrar o tempo das cartas à mão, negativos, acreditações em eventos e, curioso, uma crónica sobre o fotógrafo argentino, assinada pelo saudoso Eduardo Prado Coelho, no Público.

Lídia Jorge, José Saramago, Eduardo Lourenço, Rita Taborda Duarte, Mário de Carvalho, António Lobo Antunes, Inês Fonseca Santos, Antonio Tabucchi, Maria do Rosário Pedreira, Eduardo Prado Coelho, Afonso Cruz, Ana Paula Tavares, Gonçalo M. Tavares, Agustina Bessa-Luís, José Tolentino Mendonça são alguns dos 70 retratos de escritores portugueses que Daniel Mordzinski abarcou na sua exposição em Lisboa. Antonio Tabucchi não é português, mas é como se fosse. Foi nestes escritores em concreto que me debrucei, uns por já ter lido, outros por ainda não, alguns por já ter tido a honra de entrevistar aqui, outros porque fazem parte do meu imaginário de sempre e também uma das escritoras, Ana Paula Tavares, por ter sido minha professora. Como portuguesa, é para mim uma honra ver tantos escritores portugueses retratados pelo fotógrafo que conquistou os melhores escritores do universo literário ibero-americano com o seu olhar sagaz.

Estabelecido entre Paris e Madrid, cidades onde realizou muitas das fotografias do seu portefólio, Daniel Mordzinski integra várias das mais prestigiadas exposições de fotografia contemporânea, a par de alguns dos eventos mais acarinhados pelo meio em todo o mundo.

A exposição está patente ao público na Casa da América Latina, até 29 de dezembro, sinalizando com 200 retratos os 39 anos de carreira de Daniel Mordzinski e corporizando a sua dupla identidade de fotógrafo/leitor que tanto terá caído nas boas graças dos escritores que lhe confiaram o ato de pousar para a sua objetiva. Terá sido, porventura, sempre mais o leitor a fotografar do que o fotógrafo. E assim a literatura ganhou rostos.

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