A beleza do marido é um dos livros de Anne Carson publicados pela não (edições), a única editora em Portugal com títulos da autora canadiana, um dos nomes mais apontados entre as previsões para o Nobel. Nesta coletânea de 29 poemas, que formam 29 tangos, com tradução de Tatiana Faia, assistimos a um tratado sobre a beleza, materializado no retrato de um marido e talhado a partir das noções interpretativas da verdade e da beleza de John Keats (1795-1821). Numa alternância entre «versos elegíacos» e a distância necessária para contar e expor, Anne Carson parece fazer aqui um exercício de compreensão, senão correção, do passado.

«Uma ferida exala luz própria/ dizem os cirurgiões./ Se desligados todos os candeeiros da casa/ podias fazer o penso a esta ferida/ com o brilho que dela emana». É nesta simbiose entre a luz e a escuridão que somos levados para dentro do enredo poético de Anne Carson. Na exposição que faz de um casamento mal sucedido e da descoberta da traição de que foi alvo, traduz na sua capacidade analítica uma atitude já porventura de aceitação, sem perda de lucidez. «O meu marido mentiu sobre todas as coisas». «Tudo somado, o meu marido era/ [alguém que sabia mais/ da Batalha de Borodinó/ do que sobre o corpo da própria mulher (…)». «O que está a ser adiado?/ Casamento acho./ Esse lugar oscilante como lhe chamava o meu marido».

«Ela põe-se à procura de si própria, enquanto espera». É o que nos diz, a determinada altura, o narrador, que ora é a mulher na primeira pessoa, ora um terceiro elemento que analisa, de fora. «Como um pêndulo remexia aquele assunto dentro de si». Vai antecipando o contador da história, do seu posto intocável de observação. «Presença e ausência torceram-se para fora da vista uma da outra dentro da esposa». E entre o estar e o não estar surgem as interrogações introspetivas de um ser humano à procura de si. «Permanecer humano é quebrar uma limitação».

Somos, enquanto leitores, também testemunhas do raciocínio filosófico de Anne Carson. «Os poetas (sejam generosos) preferem esconder a verdade debaixo de camadas/ [de ironia (…)». Ainda que com ironia, Anne Carson parece dar-nos a verdade de bandeja neste livro A beleza do marido. Mas exige para a sua compreensão a nossa colaboração imprescindível. «O contorno de uma pessoa é tão diferente daquilo que se pode pôr em pedaços/ [de discurso».

Poeta, ensaísta, tradutora, professora, Anne Carson, repito, tem sido um dos nomes mais apontados para o Nobel e em Portugal tem livros publicados pela não (edições), editora independente fundada por João Concha, já aqui entrevistado. Reconhecida por deambular entre a poesia, a prosa e o ensaio, Anne Carson exige uma leitura atenta, ainda que não recorra propriamente a palavras menos comuns ou cerimoniosas. Nem tão pouco são difíceis ou inacessíveis os seus temas mais assíduos. Muito pelo contrário. Mas parece ser denso, carregado de espessura, o sentido dos seus textos, com camadas de significados e a convivência em simultâneo do claro e do menos claro, da estabilidade e da loucura, com recurso a referências ricas de outros autores, artistas, figuras bíblicas ou mitológicas.

Neste seu livro A beleza do marido, não obstante colocar-se na posição de questionar, ou precisamente por isso, Anne Carson esbarra de frente com a resposta: «(…) o que é bom para isso é o tango». Porque talvez seja uma dança a vida.

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