Volto a Ondjaki. O escritor angolano que me tem prendido (e ainda bem) por estes dias quentes. Depois de falar aqui de Os da minha rua, um amigo admirador do escritor logo me falou a dizer que não podia perder um segundo para ler A Bicicleta Que Tinha Bigodes – Estórias sem luz elétrica, que vem na mesma linha da recuperação simbólica da infância. Das raízes. E o Entre | Vistas é uma compensação permanente, porque permite exatamente essa troca de referências, partilha extraordinária, numa ampliação contínua do olhar, a partir do olhar do outro. Foi o olhar do “outro” que me trouxe aqui. À bicicleta que, afinal, tinha mesmo bigodes.

Duas histórias convivem, em A Bicicleta Que Tinha Bigodes, num fio condutor bem esculpido: o funeral do Sapo Raúl, que nos remete para uma menina Isaura, que atribui à bicharada nomes de presidentes de países por esse mundo fora e de outras personalidades importantes; e a candidatura ao concurso da Rádio Nacional de Angola, aberto a todos os seus ouvintes, cujo prémio para o primeiro lugar é uma bicicleta com as cores da bandeira angolana e uns bigodes (para os mais crentes na imaginação).

Numa Angola em guerra, com a visita da luz das estrelas poucas vezes intercalada com a luz elétrica, Ondjaki diz que «(…) quando a luz vai na minha rua, as crianças afinal reclamam de não ver novela mas no fundo no fundo, ficamos contentes porque podemos fazer mil coisas fora do ritmo normal das nossas vidas». E as mil coisas passam pela partilha, pelo olhar o outro nos olhos, pela conversa tardia, o convívio com os cheiros e os sons. E também com o silêncio:

                «O silêncio voltou como a água que se entorna numa aguarela acabadinha de pintar:

                – Tio Rui, os silêncios afinal servem para quê?

                – Para as pessoas estarem umas com as outras.

                – Não basta estarmos sentados no mesmo lugar?

                – Não – o tio Rui parou de coçar os bigodes.

– É preciso olharmos para o outro.»

E é este o ritmo de mais uma história de Ondjaki, contada através dos olhos puros da criança (que porventura todos temos em nós). Os mesmos que nos recordam, como na estória de Ondjaki, que «um segredo é uma coisa de pensar, não se diz».

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