D epois de, na clausura da pandemia, nos ter sido imposto transferir para o digital tantas das nossas práticas, soube especialmente bem voltar a uma entrevista presencial. Com as regras seguidas, é certo, mas nem por isso no lugar mais óbvio. Desta vez, fui à cidade onde se respiram as ideias, Leiria, para uma conversa marcada com o Professor Carlos Ascenso André, na emblemática Livraria Arquivo. Chego uns minutos antes da hora marcada, com a natural ansiedade de poder conhecer, conviver e conversar com um homem que é professor, escritor, poeta, tradutor, latinista, leitor, gestor, empreendedor. O português que estudou na Universidade de Coimbra, na qual chegou a Diretor da Faculdade de Letras, a mais antiga e carregada de rituais. O português que desempenhou um cargo político em Leiria, foi chairman de uma empresa na área do vidro em Nova Iorque, fez o corredor atlântico entre Lisboa e os EUA meses a fio. O português que é latinista, inveterado leitor e tradutor de grandes poetas fundadores da literatura ocidental, Ovídio e Virgílio, autor de mais de 20 livros, três dos quais de poesia. O português que se refez no oriente, onde ganhou morada ao serviço da língua portuguesa em Macau e numa China que conheceu de lés a lés. O português que traduziu uma das mais relevantes obras de sempre, este ano publicada: Eneida. Para falar do herói humano, da metodologia da tradução, da desconstrução dos cânones, mas também (ou sobretudo) da humildade e da ética de Confúcio, dos netos e da estética da palavra, o Professor Carlos Ascenso André teve a generosidade de me entregar mais de uma hora do seu tempo, sem medir um único minuto.


Chegou-nos este ano às mãos, por essa grande editora que é a Livros Cotovia (que, infelizmente, nos vai deixar), a sua tradução da Eneida, de Virgílio. Quando se dá o seu primeiro encontro com a obra latina fundadora daquilo que nós próprios somos?  

Há dois primeiros encontros e os dois pela mesma mão. De quando eu era adolescente e estudei latim, não me recordo de nada. Mas lembro-me de ter encontrado a Eneida na minha licenciatura em Clássicas, em Coimbra, e não ter ficado tão apaixonado assim. Passados cerca de dois anos, fiz o mestrado e tive num seminário chamado Epopeia Latina o Professor Walter de Medeiros, cujas aulas eram simplesmente fantásticas. Aí fiquei apaixonado pelo texto. Não percebi, na altura, ainda, que estava perante um texto fundador da literatura ocidental, um texto absolutamente basilar. Percebi que estava perante uma epopeia de um herói que não queria ser herói.

Não era uma Ilíada… um Aquiles.  

Exato. Era uma epopeia de um herói que sofria. Os heróis têm raivas, mas não sofrem. Aquiles não sofre. Eneias sofre. Fiquei, então, fascinado pelo poema. Dediquei-lhe muito tempo, porque fiz o trabalho final do seminário sobre um tema seu central: a morte e a vida. Foi, entretanto, feita uma publicação a seis mãos – foi uma honra que aquele professor me deu –, em que um dos textos era dele e um outro era meu. Mas depois parei. A minha carreira académica evoluiu. Fui professor de Literatura Latina vários anos e fui ensinando a Eneida, mas nunca me atrevi a traduzi-la por respeito ao Professor Walter de Medeiros. Cheguei a pensar naquilo e acabava por dizer que não. Porque o próprio Professor Walter de Medeiros me dizia: «Não, eu não traduzo». E dava uma explicação (ele era um perfeccionista): «Eu não traduzo, porque vou demorar 12 anos a traduzir os 12 livros da Eneida. Quando terminar, estarei tão longe do primeiro livro… que vou rever e já sei que demorarei 6 anos a rever. Isto nunca mais acaba e não me chegarão os anos de vida».

Quis o destino que eu fosse Diretor da Faculdade [de Letras da Universidade de Coimbra] quando ele [Professor Walter de Medeiros] faleceu. E, em Coimbra, a partida de um mestre jubilado tem rituais próprios, um dos quais o elogio fúnebre, que cabe ao diretor. Quis então o destino que fosse eu a fazê-lo. Acho que foi nesse dia, precisamente, que decidi traduzir a Eneida.

Fotografia: Cortesia do Jornal de Leiria.

 

Seria uma epopeia…

Por respeito a este ar sagrado que esta afirmação tinha, eu nem sequer me atrevia. Mas a relação entre mim e o Professor Walter de Medeiros foi crescendo muito com os anos. Era uma relação muito característica, com muito afeto. Como quando um discípulo tem afeto pelo seu mestre. Havia coisas curiosas. Estávamos na mesma faculdade, em Coimbra, não havia e-mails, mas nós trocávamos mensagens por bilhete. Ele deixava-me bilhetes na gaveta do correio e eu fazia o mesmo com ele. Guardo, religiosamente, alguns desses bilhetes. Ele tinha uma letra redondinha, pequenina, uma letra perfeita. Fazíamos questão de que houvesse estética nessas mensagens. Ele, entretanto, foi viver para Lisboa, mas manteve sempre uma relação estreita comigo. Quis o destino que eu fosse Diretor da Faculdade [de Letras da Universidade de Coimbra] quando ele faleceu. E, em Coimbra, a partida de um mestre jubilado tem rituais próprios, um dos quais o elogio fúnebre, que cabe ao diretor. Quis então o destino que fosse eu a fazê-lo. Acho que foi nesse dia, precisamente, que decidi traduzir a Eneida.

A grande diferença entre a Ilíada, a Odisseia e a Eneida está na humanização.

Quantos anos foram necessários para a tradução?

Cinco anos, de 2015 a 2020. E houve de facto ali um clique. Eu senti o peso de fazer o elogio daquele homem [Professor Walter de Medeiros]. E depois há coisas curiosas… a Dr.ª Maria Luísa Braga, sua viúva, ofereceu à faculdade a biblioteca dele. Eu era o diretor, recebi a biblioteca, mandei entrega-la no departamento próprio. Mas, um dia, a senhora vem de novo ter comigo e diz-me que não tinha dado os livros todos, acrescentando: «Eu não os dei todos, porque há ali um núcleo que ele amava». Eram os livros de literatura italiana, nomeadamente do poeta Gabriele d’Annunzio. Ora, a Dr.ª Maria Luísa Braga veio dizer-me que aquela parte teria de ser dada a alguém por quem ele tenha tido muito afeto. E perguntou-me se eu podia ficar com aqueles livros. Deve imaginar que eu tive um arrepio na espinha. Esses livros estão em minha casa, em Monte Real, numa estante na qual apenas estão os livros dele.

Tamanha responsabilidade…

Sim, aquele é um espaço sagrado. Isto tudo para lhe dizer que a tradução da Eneida dá-se num contexto de grande afetividade. Este professor era estranho, no sentido em que vivia a pensar na beleza do que dizemos. Ele estava sempre a pensar na palavra, para encontrar…

A palavra certa.

Certo. Era muito rigoroso e ensinou-me a sê-lo também nesse aspeto.

Confesso que de todas as manifestações que houve à volta desta minha tradução foi a do meu colega e amigo Frederico Lourenço, que publicou na sua página no Facebook um elogio ao meu trabalho, a que mais me emocionou.

Fotografia: Cortesia do Jornal de Leiria.

 

Nestes tempos tão dados à superficialidade e à instantaneidade, considera que mantemos essa estética da palavra?

Eu acho que sim. Mesmo sem pensarmos nisso. Temos o cuidado de encontrar a palavra certa. A questão é que a palavra certa para a Paula não é a palavra certa para mim. O mesmo acontece em relação ao uso da cor por parte de um pintor ou ao da forma por parte de um arquiteto. A palavra certa depende muito do meu sentido estético e tem uma carga de subjetividade muito intensa. E quanto mais viajei, mais aprendi a respeitar isso. Descobri a beleza fora dos meus cânones. Agora, claro, não sei se as pessoas pensam nisto. Acham sempre muito estranho que eu precise de tanto tempo para traduzir um verso. Posso demorar uma hora para traduzir 20 versos. Mas também posso demorar duas semanas para traduzir um. Se não conseguir encontrar a palavra certa, ou não saio dali ou marco aquilo e tenho de lá voltar.

Há uma metodologia da tradução?

Sim, há uma metodologia. Não pode ser espontâneo. Quando olho para um texto – então deste autor [Virgílio] – no qual eu sei que não há nada por acaso, o sítio onde a palavra está tem uma razão. Tenho ainda de ter presente a carga sonora e a semântica. Tudo isto se junta no esforço de tradução. No fim, leio em voz alta e procuro através do ritmo perceber se tudo está bem. Confesso que de todas as manifestações que houve à volta desta minha tradução foi a do meu colega e amigo Frederico Lourenço, que publicou na sua página no Facebook um elogio ao meu trabalho, a que mais me emocionou.

Acredita que o li? Longe de saber que viria um dia a entrevista-lo a si…

[Sorriso]. Enviei-lhe depois um e-mail e na resposta ele ainda me disse mais do que continha a sua publicação. Ora, fiquei muito sensibilizado com aquilo. Também com o que escreveu Mário Cláudio, por exemplo. Essas foram grandes recompensas que tive. Se é para ter esse prémio, já chega.

A partir dos seus olhos latinos, como olha para as obras gregas equivalentes, a Ilíada e a Odisseia?

Esses textos são todos fundadores. A grande diferença entre a Ilíada, a Odisseia e a Eneida está na humanização. Os heróis homéricos são heróis de estatuto e de feição. O estatuto do herói remete, por definição, nomeadamente na mentalidade antiga, para alguém que é ao mesmo tempo divino e humano, porque é filho de mortal e de divindade. Tanto Ulisses, como Aquiles e, ainda, Eneias são filhos de uma deusa e de um pai mortal. Para se ser herói, é preciso ser um semideus. No caso dos heróis homéricos, eles assumem essa identidade divina e é essa identidade divina que se sente do princípio ao fim. Mais na Ilíada do que na Odisseia. O Ulisses já tem uma dimensão humana, embora não tão forte como na Eneida. A grande diferença, no caso da Eneida, é que…

Há uma desconstrução da figura tradicional do herói…

Exatamente. E há, depois, esta humanização do herói que faz com que nos esqueçamos na leitura de que estamos perante o filho de uma deusa. Ele não se comporta como tal. E há também a própria estruturação do texto. Repare que a Ilíada é o poema do triunfo da Grécia. Aliás, nem sequer é bem o poema do triunfo da Grécia, porque a Ilíada não termina a guerra de Tróia. A Ilíada é sobre a raiva de Aquiles. É um poema sobre um assunto que se esgota em si próprio. A Odisseia é um poema de regresso, continua por isso a ser o poema do triunfo da Grécia. Narra-se a queda de Tróia, o regresso de Ulisses a Ítaca e, portanto, é efetivamente um poema de regresso mas continuamos no campo do triunfo da Grécia. Na Eneida, juntamos duas coisas: a morte de Tróia (que também já estava na Odisseia) e o nascimento de um outro império, na medida em que a Eneida é uma metáfora da história de Roma. Mas aquele império nasce de um império que morreu, ao contrário do que acontece nos poemas homéricos. Ou seja, há aqui uma característica de que pouca gente fala: dizer que Roma faz a junção da Grécia com o oriente (porque Tróia é o oriente). Esta ideia de que é preciso que um império morra para que o outro cresça não é total na Eneida, na medida em que Tróia não morre verdadeiramente. Quem funda Roma é um filho de Tróia. E, depois, há o conteúdo humano dos heróis, o que me parece ser a parte mais notável. Eneias é humano. Eneias chora. Eneias tem raivas. Eneias tem excessos, em todos os sentidos.

Fotografia: Cortesia do Jornal de Leiria.

 

É uma síntese do que somos?

É. E se pensarmos na questão do império – para mim, esta questão é central –, ou seja, que a Eneida funde na figura de Eneias o primeiro imperador de Roma, Augusto, porque o objetivo da Eneida é também divinizar Augusto… Se pensarmos que Eneias é Augusto e Augusto é Eneias, a verdade é que nunca sabemos qual é qual. Mas percebemos que Augusto cometeu aquelas atrocidades todas. Augusto é calculista. Ele desenhou a régua e esquadro o seu percurso de sucesso. Quando começo a olhar para esta noção do fundador do império, com estas características, penso: isto é uma leitura de todos os impérios que vieram depois e daqueles que ainda estão a acontecer, porque o nosso mundo, infelizmente, está cheio de pretensos imperadores. Neste século XXI, constatamos que nunca houve no mundo tantos imperadores ao mesmo tempo: temos nos EUA, na Rússia, na Turquia, na China. Depois temos alguns fantoches pelo meio. Nesta minha visão do mundo, olho para estas pessoas e penso que não inventaram nada. Virgílio teve esta capacidade profética de nos fazer olhar o nosso tempo 2 mil anos antes.

Essa é, de resto, uma das características dos clássicos…

Normalmente, sim.

Será preciso refazer a tradução, porque a tradução é um compromisso entre a obra original e o leitor de destino.

Do seu ponto de vista, qual a importância de continuarmos hoje a ler os clássicos?

É como continuar a usar um nome que já foi o nome do seu pai e do seu bisavô. É mais ou menos a mesma coisa. Estou a gracejar, mas é este o sentido. Os clássicos são a nossa raiz. E mesmo quando há a tradução, não é a mesma coisa. É preciso que alguém os traduza outra vez. Temos de ter a noção de que esta tradução [a sua própria tradução de Eneida] morrerá. Quem me dera que ela seja uma boa tradução por 50 anos. Mas daqui a 50 anos, ela morre. Porquê? Daqui a 50 anos, as pessoas não falam assim, não têm esta mentalidade, a cultura será diferente e a forma como definiremos a cultura será diferente. Será preciso refazer a tradução, porque a tradução é um compromisso entre a obra original e o leitor de destino. O meu leitor de destino são vocês. Ora, eu não posso escrever para o leitor que houver daqui a 50 anos, porque não o conheço. Os clássicos são esta origem que temos de saber ir buscar e compreender. Eles têm lá tudo. E todos nós vamos lá buscar coisas, mesmo que não as tenhamos lido. Nós respiramos os clássicos. Eles fazem parte da nossa raiz.

Como se sente quando se referem a si como latinista (que também já traduziu Ovídio)?

Uma boa parte do meu trabalho tem sido traduzir do latim – e traduzir do latim não é só um trabalho de tradução, é também de recriação. Não me sinto mal. É a vida que escolhi.

Eu olho para esse epíteto como um elogio, atenção.

Sim, é um elogio. Eu sei que não há assim tanta gente a traduzir literatura latina e, por isso, sinto-me bem. Os meus projetos futuros, aliás, passarão por continuar a traduzir. Quero por em texto poético português os poetas latinos. Não quero meramente traduzir. É por em texto poético e isso tem uma exigência muito especial. A tradução é uma traição. Mas é o mais próximo do que sou capaz.

Esse contacto com os grandes poetas fez também de si um poeta?

Acho que sim. Ao contrário de muita gente que escreve poesia, quando era jovem, nunca escrevi poesia [gargalhada]. Acho que descobri poesia na leitura dos poetas clássicos, sim. Não sinto que seja uma obrigação. Quando me perguntam quando sai o próximo livro, respondo: «Sei lá». Eu sou professor. Tenho obrigação de publicar livros na minha área. Se, de repente, encontrar um qualquer fio condutor entre as várias coisas que vou escrevendo, pego nele e faço um livro. Este último livro […o sol, logo em nascendo, vê primeiro, da Editora Livros do Oriente] foi assim. Eu andava pela China, comecei a escrever e a gostar dos poemas que por lá fazia e, depois, traduzi-os em livro. Respondendo à sua pergunta diretamente, acho que a minha poesia é muito influenciada pela literatura que leio, grande parte dela latina e portuguesa clássica, embora leia poetas modernos.

Quais?    

Eu sou um devoto de Eugénio de Andrade e de Sophia de Mello Breyner Andresen. Dos vivos, leio bons prosadores, como Lídia Jorge, Mário Cláudio. Leio de vez em quando os escritores modernos, como Gonçalo M. Tavares, Valter Hugo Mãe, mas sobre os quais é ainda cedo para ter um juízo de valor.

Pergunto-lhe isto com esta frontalidade, para podermos colher para nós as suas referências [sorriso].

Admiro, de facto, muito Lídia Jorge e Mário Cláudio. Aprecio também muito a poesia de Manuel Alegre. José Gomes Ferreira, mas também já não está entre nós. Li algumas coisas de Luís Quintais e apreciei. Mas não sou o profundo conhecedor dos poetas portugueses vivos. Sou mais dado aos que já são canónicos. Mas tento sempre descobrir. Ainda há dias li o último dos três romances de [Álvaro] Laborinho Lúcio e fiquei verdadeiramente espantado e disse-lho.

Vamos a Coimbra? [sorriso] Tenho três perguntas sobre Coimbra: a) Coimbra… é uma lição? b) Como sintetizaria a sua experiência como Diretor da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra? c) Onde se conciliam ou conflituam o professor e o gestor?

Não sei se Coimbra é uma lição. É uma boa universidade, é um sítio onde se aprende, portanto, desse ponto de vista, Coimbra é uma lição. Falamos de uma expressão poética – «Coimbra é uma lição de sonho e tradição» – e logo aí já se estraga um pouco a dimensão da universidade. Ficam dessa lição o ritual, a praxe, os costumes, e não a lição no sentido clássico da expressão. Eu tenho uma visão muito contraditória em relação a Coimbra: tenho orgulho em ter sido aluno em Coimbra, aprendi muito e tenho um enorme respeito em relação à Universidade de Coimbra. Mas entendo que a Universidade de Coimbra devia tomar muita atenção aos sinais dos tempos e não o tem feito. Ontem li uma entrevista de Boaventura de Sousa Santos em que dizia que a Universidade de Coimbra se transformou numa universidade de província. Ora, eu assino por baixo. Dizer «de província» é o mesmo, na minha opinião, que dizer provinciana. E continuo a assinar por baixo. Embora ela esteja convencida do contrário. E essa é uma das contradições da Universidade de Coimbra. Eu próprio disse, também numa entrevista, que a Coimbra um pouquinho de humildade não faria mal nenhum. Só lhe fazia bem. Coimbra vive numa situação de autodeslumbramento e isso não é bom para a universidade. O mundo de hoje já é diferente e faz com que a grandeza de Coimbra já não tenha a mesma grandeza. Eu explico: eu vivi 6 anos no oriente e percebi várias coisas do ponto de vista da dimensão. Percebi que o mundo é muito grande (embora também seja muito pequeno). Nesse mundo, Portugal quase não existe. Se Portugal quase não existe, Coimbra não existe mesmo. Em boa verdade, na China, à exceção das pessoas que estudam português, ninguém sabe o que é Coimbra. Mas toda a gente sabe o que é Harvard. Essa ideia que temos de que Coimbra é a universidade mais importante do país… calma. Aprendi, pois, a relativizar tudo. Também por isso senti algum desencanto quando regressei. Para voltar à pergunta: Coimbra é uma lição, mas à luz da vida e do mundo de hoje, Coimbra devia tomar lições para si. A humildade faz bem às pessoas. A mim fez. Eu não era assim e agora sou.

E relativamente à segunda pergunta sobre Coimbra…

A minha experiência como Diretor da Faculdade [de Letras] foi muito interessante e inesperada. Antes, eu tinha estado fora da faculdade, dado ter desempenhado, aqui em Leiria, um cargo político durante 6 anos. Quando regressei à faculdade, curiosamente (tenho um percurso muito estranho, na verdade), fui, entretanto, desafiado a dirigir um projeto empresarial na Marinha Grande. Voltei à faculdade, dava então as minhas aulas e, ao mesmo tempo, era Presidente do Conselho de Administração de um agrupamento de empresas na área do vidro: Marinha Grande MGlass. Foi um case study em Portugal.

Foi comigo como diretor que a faculdade passou de uma instituição com 30 “institutozinhos” para uma instituição com 4 departamentos. Do ponto de vista da organização, foi uma revolução que aconteceu na Faculdade de Letras de Coimbra.

Há aí um ADN de gestor?

Não sei, não sei. A verdade é que desempenhei essa função durante 2 anos e, ao mesmo tempo, era o chairman da empresa sua parceira, a extensão em Nova Iorque. Nessa altura, vivia entre Portugal e os EUA. Todos os meses, tinha de ir ao escritório em Nova Iorque. Quando deixei isto – queria parar –, pregam comigo (é a expressão) a diretor de faculdade. Foi uma experiência interessante do ponto de vista de compreender, por dentro, a faculdade e a universidade. O diretor faz parte do Senado e das grandes decisões da universidade. Tem de ser ouvido. Foi bom, também, porque vivi os rituais. Sendo a Faculdade de Letras a mais antiga, o seu diretor tem um lugar especial. Penso que terei deixado a minha marca. Foi comigo como diretor que a faculdade passou de uma instituição com 30 “institutozinhos” para uma instituição com 4 departamentos. Do ponto de vista da organização, foi uma revolução que aconteceu na Faculdade de Letras de Coimbra. Foi uma experiência interessante e dolorosa, por uma razão: apanhei nesses anos, por contingências da vida, os anos da Troika. Fui diretor entre 2006 e 2013. Isto não é nenhuma observação ou crítica, é da vida, mas a verdade é que todos os anos vi o meu orçamento a diminuir 15% em relação ao ano anterior. Está a imaginar como é que se gere uma faculdade nestas circunstâncias… É claro que trouxe para esta experiência a minha experiência empresarial. Ora, por alguém com experiência na gestão empresarial privada na gestão empresarial pública é um desafio engraçado. E o que posso ter trazido de absolutamente fundamental é a capacidade de decidir de repente. Em resumo: é uma experiência da qual não tenho nada a arrepender-me. Foi boa.

E o professor? Onde ficou o professor?

Aí vem a parte do conflito. Enquanto fui diretor, quase pus entre parêntesis a minha carreira como professor. Publiquei uma série de livros até 2006 e, entre 2006 e 2013, salvo erro não publiquei nada. Não tinha tempo. A faculdade tomava-me o tempo todo. Não me retirou a dimensão estética. Mas mexeu um pouco comigo. Naquele tempo, não era fácil fazer conviver o professor com o poeta, por exemplo. A conciliação não era fácil. Mas isso teve que ver, não com a função como diretor, mas com as circunstâncias em que assumi essa função.

Pediram-me que começasse do zero uma unidade de apoio ao desenvolvimento do ensino do português em Macau e no interior da China. Disseram-me: «O senhor é que vai dizer como é que isso se faz». Deve ter sido o momento na vida em que construí, de facto, uma coisa de raiz.

Vamos agora ao oriente. Com 60 anos de idade, recebe um desafio de um senhor chinês – um olheiro, na verdade – que lhe bate à porta, em Coimbra. Aceita o desafio e segue rumo a Macau, onde funda o Centro Pedagógico e Científico da Língua Portuguesa do Instituto Politécnico de Macau. E viaja entretanto pela China…  

Vamos atrás: eu estou a viver, aqui, em Leiria, num universo fechado, entre Ourém, Monte Real e Coimbra. Viajo a fazer contactos com outras universidades, como é normal, mas, não obstante a ilusão de parcerias que fiz com a Rússia, Timor-Leste ou Moçambique, o meu centro estava sempre em Coimbra. Quando esse senhor chinês a que chamou “olheiro” – e que era o Presidente do Instituto Politécnico de Macau (IPM), o Professor Lei Heong Iok, cidadão de grande prestígio em Macau e na China e um enorme amigo de Portugal – me toca a porta e diz que pretende que crie o Centro Pedagógico e Científico da Língua Portuguesa do IPM, perguntei-lhe: «Mas isso é para fazer exatamente o quê?». Eis a resposta que me foi dada: «Não sei bem». Pediram-me que começasse do zero uma unidade de apoio ao desenvolvimento do ensino do português em Macau e no interior da China. Disseram-me: «O senhor é que vai dizer como é que isso se faz». Deve ter sido o momento na vida em que construí, de facto, uma coisa de raiz. Comecei do zero. Tinha duas funcionárias administrativas, chinesas. Não eram professoras. Quando saí, já éramos 13 pessoas, 8 das quais doutoradas. Está a ver o edifício que fui construindo. No início, não sabia o que ia fazer. Aliás, devo dizer-lhe que isto foi até uma coisa que chocou um pouco Coimbra. «Como é que o Diretor da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra vai para diretor de um centro do Instituto Politécnico de Macau?». Nós temos este complexo, na universidade, face ao politécnico. Mas isso a mim não me preocupou grande coisa. Bem, ao fim de estar um mês e tal em Macau, fui falar com o Presidente do IPM, o Professor Lei Heong Iok, para lhe dizer que me sentia mal. Na minha maneira ocidental de ver as coisas, há um mês e meio que estava a ganhar um salário que não era tão baixo como isso e ainda não tinha feito nada. Não me sentia bem. Levei-lhe um documento Excel com um cronograma e umas ações. Era aquilo que na altura eu conseguia estruturar. Ele agradeceu-me, levantámo-nos e no fim deu-me uma pancada nas costas e disse-me: «Não se esqueça, Professor, devagar se vai ao longe». Eu percebi a mensagem e continuei sem fazer grandes coisas. Fui fazendo umas conferências em Macau. Coisa espantosa para muita gente: levei lá o Pedro Abrunhosa para uma palestra. Aliás, o Pedro ligou-me há dias a dizer que tinha acabado de comprar a “minha” Eneida e a dar-me os parabéns.

Fotografia: Cortesia do Jornal de Leiria.

 

Ele tem essa dimensão. É um artista de mão cheia…

Sem dúvida que é. Temos uma amizade muito interessante. Bem, fui então fazendo essas conferências. Mas Macau tem um ambiente muito pequeno, com clãs aqui e acolá, e a determinada altura deixei de me sentir bem só ali. Sem deixar de fazer coisas em Macau, fui para a China. Fiz até um plano de viagens – e esse é um grande momento da minha transformação – e apresentei-o, juntamente com o orçamento. «Se tem orçamento, vá», disseram-me. Começo a viajar na China sempre com um princípio em cada viagem: um dia para a universidade e um dia para a cidade. Eu tinha de conhecer o contexto. Nunca tive de aprender chinês, porque tinha uma tradutora em cada viagem. Comecei a percorrer a China. Quando começamos a viajar de um sítio para o outro, num país como este, mudamos os nossos preconceitos em relação ao país. Eu não tenho propriamente uma simpatia ou entusiasmo pelo regime político chinês, nem tenho que ter, porque não é o meu país. Mas, repare, eu tinha era que ter os olhos abertos quando ia na rua. Um dia (eu tenho o vício terrível de, pelas 10 da noite, ir passear uma ou duas horas sozinho – o que fazia de mim na China um extraterrestre), em Cantão, resolvi meter-me por um beco, que deu origem a outro beco e a outro. Eu estava sozinho e, a certa altura, perdi-me. Ora, ali pude ver uma China que não estava habituado a ver. Todos os anos vou a Xangai, sou professor em Xangai durante um mês por ano. Mas eu quero conhecer fora de Xangai. Conhecer a paisagem chinesa é um espanto. Conhecer os templos… não é a arquitetura, mas as pessoas a rezar (e eu sou agnóstico – ou, pelo menos, era). Ver como é que se processa a religião na forma de ser daquelas pessoas. Numa outra vez, subi às montanhas de Yunnan, perto da capital da província, Kunming, para ver os terraços de arroz, a 4500 metros de altitude. Não havia hotéis. E eu fiquei lá três noites a contemplar aquela maravilha da natureza. Mesmo sendo eu um agnóstico, aquilo mexeu com a minha espiritualidade, ao ponto de me trocar os meus azimutes pessoais. Bom, mas nós estamos sempre a vacilar nas nossas convicções e isso é bom. Fora da China, um dos sítios fenomenais que visitei foi no Camboja: uma província chamada Siem Reap. Visitei as ruínas de Angkor [Wat], um complexo de templos dos mais espantosos que vi no mundo até hoje. Não há ali nada. Há pessoas simples que me acolhem, num hotel, como se eu fosse da família. Quando cheguei ao templo, fiquei esmagado por aquilo. Aquela arquitetura, aquelas pedras gastas de tempo, as esculturas que já não estão perfeitas mas nas quais eles não mexem, aquele silêncio. Não há ali nada, só há aquilo. Mas aquilo foi feito por um império. Faz-me lembrar as pirâmides do Egipto. Mas, no Egipto, havia uma imensa civilização. Alexandria era uma capital. Ali não. Tudo isto me modificou.

Aprendi que não há só uma verdade e que nenhuma delas é mais verdadeira do que a outra. Da mesma forma que a cultura chinesa tem o direito a ter a sua verdade, nós temos o direito de ter a nossa. Não temos é o direito de achar que a nossa é superior à deles. Quer estejamos a falar de religião, filosofia ou política.

Em que consistiu essa mudança? Que homem novo é aquele que regressa a Portugal?

Em primeiro lugar, regresso com uma noção de que não sabia nada. Descobri que não sei nada. Ou melhor, que aquilo que sei é uma parcela ínfima da imensa mole que há para saber. E, portanto, preciso ter esta humildade. Reconhecer que sabemos pouco e somos insignificantes. Em segundo lugar, tornei-me num homem que aprendeu os valores da tolerância como nunca antes havia conseguido. Aprendi que não há só uma verdade e que nenhuma delas é mais verdadeira do que a outra. Da mesma forma que a cultura chinesa tem o direito a ter a sua verdade, nós temos o direito de ter a nossa. Não temos é o direito de achar que a nossa é superior à deles. Quer estejamos a falar de religião, filosofia ou política. Não nos atrevamos a julgar os outros. Quando eu venho, sou um ser muito mais humano e humilde. E devo dizer-lhe que antes eu era muito coimbrão, muito arrogante. Não era como sou agora.

Há uma palavra a que vai recorrendo: a humildade…

Sim, porque antes não a tinha. Eu era vaidoso (ainda sou!). Eu era – e sei que sou – narcisista. Mas o facto de ganharmos consciência disso pode fazer toda a diferença.

Ao conhecer a sua história, lembro-me de uma frase de Eduardo Lourenço: «o mundo real começa quando saímos de nossa casa para encontrar os outros».

Digo-lhe uma coisa muito engraçada, Paula… Eduardo Lourenço disse-me um dia (eu tenho o privilégio de ser amigo dele): «O Carlos precisa de sair de Portugal durante uma temporada larga para olhar Portugal, de fora para dentro. Enquanto não o fizer, não consegue perceber-me e, sobretudo, não consegue perceber o país».

Fotografia: Cortesia do Jornal de Leiria.

 

Porque ele também o fez.

Ele também o fez. Eu ouvia isso e estava longe de imaginar o que me iria acontecer. A cada dia, no oriente, lembrei-me sempre desta frase de Eduardo Lourenço. Ele aprendeu a olhar de fora e tem a noção clara de que quem não o consiga fazer não terá a lucidez do olhar.

Macau permitiu-lhe passar a olhar o mundo a partir de um lugar “descentralizado”? 

Permitiu, sem dúvida. E eu estava sempre a fazê-lo, na minha enorme curiosidade. Imagine que, em Macau, eu participava num programa de rádio semanal na TDM-Teledifusão de Macau que pressupunha olhar Portugal e o mundo. Todas as quintas-feiras, lá estava eu para uma conversa em que estava a olhar Portugal de fora. Afinal, isto do oriente e do ocidente o que é? Depende do sítio onde estamos. Como o norte ou o sul. Se a Terra é redonda, não há conceitos absolutos.

Da China, trouxe uma leitura assídua: Confúcio.  

Sim, continuo a ler Confúcio. Na minha sala, tenho os Analectos de Confúcio e volta e meia leio dois ou três.

Continuo a aprender esta dimensão muito ética da existência. Feita de coisas práticas. A doutrina de Confúcio faz-nos olhar para a rua, para a pessoa que vai a passar e, a partir daí, colher um ensinamento da forma como a pessoa faz e é.

De acordo com o alemão Karl Jaspers, no seu livro Os Mestres da Humanidade, Confúcio, Sócrates, Buda e Jesus são figuras determinantes e decisivas a partir das quais se desenrola e estrutura o pensamento da humanidade. Que comentários lhe merece este património intelectual que todos herdámos?

É verdade. O mundo tem momentos especiais, com pessoas especiais. A história do mundo fez-se disso. De facto, no oriente, há dois vultos que fizeram a filosofia: Lao-Tze, que viveu um século antes de Confúcio; e Confúcio. No ocidente, temos especialmente Sócrates e um pouco também Aristóteles. Cristo é também uma das figuras centrais. Nós não somos capazes de pensar a humanidade sem essas referências. Essas referências ultrapassam as literárias, por exemplo. Posso dizer que Virgílio é muito importante, mas Virgílio não é Confúcio, nem Sócrates, nem Lao-Tze. Nada disso. Esses são marcos fundamentais e que definem a nossa maneira de ser. O mundo ocidental não seria o que é se não tivesse existido Cristo. Não seria! É uma figura com a qual ou sem a qual o mundo não seria exatamente igual. O mesmo se diria de Confúcio. E o mesmo, ainda, de Maomé ou Buda. Estão, na sua maioria, ligados a uma espécie de religião, mas temos que reconhecer que, sem eles, o mundo seria outro.

O que continua a aprender com Confúcio?

Continuo a aprender esta dimensão muito ética da existência. Feita de coisas práticas. A doutrina de Confúcio faz-nos olhar para a rua, para a pessoa que vai a passar e, a partir daí, colher um ensinamento da forma como a pessoa faz e é. O que Confúcio me ensina é, através das coisas do quotidiano, descobrir a lição para a minha existência.

Foi escolhido para liderar a Estratégia 2030 de Leiria. Como gostaria que se referissem à cidade daqui a 10 anos?  

Que aquilo que hoje se lhe reconhece, a centralidade geográfica, passasse a ser reconhecido como uma centralidade total. Geograficamente, Leiria é uma cidade central. Está à mesma distância de Lisboa e do Porto. Gostava que esta centralidade se transformasse numa verdadeira centralidade global.

Para terminar, entende que a sua tradução da Eneida possa influenciar os seus netos?

De certeza [sorriso]. Apesar de ainda não ligarem muito. Eles veem o avô na televisão e, por exemplo, o meu mais pequeno, que tem 6 anos, diz: «O avô Carlos está ali a dizer umas coisas». Mas eu acho que isso lhes diz alguma coisa. Verem o nome do avô na capa de um livro diz-lhes alguma coisa. Acho que eles vão crescer a perceber que têm raízes e a cultura tem um peso importante nessas raízes. Se eles, ao entrarem em minha casa, conseguirem ter orgulho na biblioteca do avô, já me darei por satisfeito. E a verdade é que já têm: quando entram na minha biblioteca, eles têm uma certa dimensão do sagrado que é estar no meio dos livros…

Um agradecimento à Livraria Arquivo, em Leiria, que nos recebeu de forma tão acolhedora para a realização da entrevista.

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