Fotografia de Jorge Bispo / Divulgação, no G1.

 

Neste último fim de semana, assisti na RTP2 a “Fevereiros”, um documentário fabuloso de Marcio Debellian centrado na figura de Maria Bethânia, uma das mais carismáticas intérpretes da música brasileira e que por estes dias celebra mais de 50 anos de carreira. Entre as suas declarações intimistas e as de dois irmãos, o músico Caetano Veloso e a poeta Mabel Velloso, somos apresentados a dois fevereiros: o do Rio de Janeiro, em plena preparação da Mangueira para o Carnaval, que homenageou a artista e saiu vencedora em 2016; e as tradições e os ritos religiosos de Santo Amaro da Purificação, na Bahia, terra de nascimento de Bethânia.

«O meu trabalho é produzir beleza», testemunha um dos mentores da Mangueira. No coração dos seus preparativos, entre os esboços desenhados com as primeiras alegorias até ao desfile na avenida, ouvimos testemunhos de organizadores sobre o significado de ter como representante Maria Bethânia, na sua relação viva com o catolicismo e o candomblé. No mesmo documentário, somos levados até ao Recôncavo baiano (lugar no Brasil que recebeu mais escravos negros trazidos de África) para uma imersão no ambiente familiar da artista brasileira, nas festas da sua cidade natal e no espírito religioso, regado pelo universo afro-brasileiro que inspirou a construção do enredo da escola de samba mais popular do país.

«Santo Amaro é a única cidade do Brasil que comemora o 13 de maio, uma das datas mais importantes da história brasileira. Comemoram desde o ano seguinte à abolição da escravatura (1888)», frisa Caetano Veloso. Também o dia 2 de fevereiro, Dia Nossa Senhora da Purificação, vem retratado enquanto efusividade, devoção, encantamento e importante território de agregação das tradições indígenas, africanas e portuguesas. O matriarcado baiano assenta, pois, no pressuposto da proteção da sociedade e da comunidade sem a qual não se vive. Contemplamos, aqui, a simbiose entre o samba e a macumba, enquanto refletimos sobre o racismo, como se fizéssemos enquanto espectadores parte de uma literatura do fantástico ou realismo mágico, já que, como diz Chico Buarque, «as palavras africanas são muito saborosas».

Da boca de Caetano Veloso, ouvimos ainda a leitura ritmada e arrepiante de um poema descrevendo a voz de Bethânia, sua irmã: «sua voz sempre foi assim peculiar/ com tons de cobre e de água marinha/ é uma voz pessoa, indissociável e desde sempre atada à música através da poesia». E remata: «os anos vão passando e ela vai ficando mais culta daquilo que ela é, culta de si mesma».

Pela voz de Caetano Veloso, ouvimos ainda o que diz a sua própria canção: «para se entender tem que se achar/ a vida não é só isso que se vê, é um pouco mais».

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