N este 2020, marcado por uma pandemia que a todos apanhou de surpresa e inopinadamente, celebramos os 100 anos do nascimento de Clarice Lispector (1920-1977). O seu nascimento, a esta distância, apanhou também desprevenido todo o século XX. Clarice Lispector alterou profundamente o panorama ficcional brasileiro do século XX. Num estilo inclassificável, sem catalogação possível e com grande recetividade, freios pelo meio, é certo, mas com o assombro da crítica e de um meio muito pouco acostumado a que a voz literária e artística dominante fosse tão feminina, tão diferente, tão arrebatadora e impactante. Entre nós, em pleno século XXI, está Carlos Mendes de Sousa, investigador da Universidade do Minho e um dos principais especialistas de Clarice no mundo. Desde que o vi, ao vivo, a falar sobre o interior em Clarice, no S. Luiz, guardei bem guardada a vontade de lhe dirigir estas perguntas, que se propõem contribuir para a (re)descoberta sempre por terminar da escritora que continua a causar tamanho espanto.    


Fotografia de perfil: Cortesia de Nuno Gonçalves.

 

Recorda-se daquele ponto de viragem cirúrgico em que, uma vez tendo descoberto Clarice, percebeu que ficaria com ela ao longo da vida? Falo daquele tal efeito que Clarice tem sobre os seus eternos admiradores quando a descobrem…

É frequente acontecer esse efeito que refere. Clarice dá-nos encontros para a vida. Há vários testemunhos de leitores a esse respeito. Na verdade, é comum termos autores e livros de eleição, que nos acompanham, de modo mais ou menos continuado ou intermitente, ao longo da vida. Creio que a obra de Clarice é uma daquelas que suscita esse tipo de adesão, de uma forma intensa, passional. Tenho-o observado em muitos admiradores seus pertencentes a diversas gerações. O que se passou comigo passa-se com muitas pessoas. E cada um tem a sua história para contar, naturalmente. No meu caso, houve dois momentos decisivos. O momento da descoberta propriamente dita e o momento em que tive a sorte de, profissionalmente, poder escolher a sua obra para me deter em trabalhos de pesquisa de maior fôlego.

Fui atingido por Clarice muito cedo. Descobri-a, justamente quando era aluno na Faculdade de Letras de Coimbra, no final dos anos 1970. Foi um acaso que me levou ao seu encontro: a descoberta aconteceu, no meu 2.º ano da licenciatura, na biblioteca do Instituto de Estudos Brasileiros da Faculdade. Eu andava a fazer pesquisas para um trabalho sobre uma obra de José Lins do Rego, Banguê, quando deparei com o nome “Lispector” nas estantes. O acaso deveu-se sobretudo ao facto de eu não conhecer a autora. Clarice não fazia parte do programa da disciplina de Literatura Brasileira ou de qualquer outra disciplina. Nesse momento, dois anos após a sua morte, era ainda muito pouco conhecida em Portugal. E na Universidade não era estudada (praticamente só eram estudados autores mortos há bastante tempo, portugueses ou estrangeiros).

Atraído pelo nome da escritora e pelo título de um livro, requisitei A Maçã no Escuro, um romance difícil e desafiador e tão diferente da literatura que eu conhecia. Veio-me, então, de imediato, o desejo de ler tudo o que Clarice escrevera. Fiz isso com outros autores a quem aderi de uma forma mais passional do que racional.

Desde essa altura, voltei vezes sem conta aos seus textos. E mais do que uma mera revisitação, sempre que releio Clarice, vem ao de cima o próprio sentido inaugural da primeira vez. Creio que o que me atraiu no início foi o facto de nada ser óbvio. Aquela escritora também para mim era misteriosa e isso era um desafio. E claro, a sua escrita, como disse, tão diferente, uma escrita que era simultaneamente simples, profunda e estranha, que deixava sempre qualquer coisa por desvendar. Tudo isso exercia uma atracção, provocava um encantamento que me prendia.

O segundo momento aconteceu quase uma década depois, quando me foi feita a proposta de vir a desenvolver, no meu caminho universitário, uma pesquisa numa área de estudos que implicava uma mudança de direcção para um campo completamente diferente em relação ao que fazia na altura,  isto é, a passagem da literatura portuguesa para a literatura brasileira. Essa pesquisa tinha a ver com o doutoramento. Mas eu ainda não tinha acabado o mestrado. Nesse preciso instante, pensei e disse-o: “quero trabalhar sobre Clarice Lispector”. A voz avisada de quem me propôs a nova área de estudos, o Prof. Aguiar e Silva, meu orientador, limitou-se a dizer que era cedo; chegaria o tempo das decisões.

Chegado enfim o momento de decidir, de apresentar o projecto que levaria à concretização do trabalho em causa, por várias razões afastei a obra de Clarice do meu horizonte. Nos dois anos seguintes, mudei duas vezes de projecto (modernismo e vanguardas, Drummond). Até que um dia me chegou às mãos uma edição de A Paixão segundo G.H. com aparato cítico (da colecção Archives da Unesco). Disse para comigo: “é mesmo sobre Clarice que tenho que escrever”. E tudo mudei — “A desistência é uma revelação”, lê-se no livro.

Para acrescentar que “aí onde respiram as obras mais exigentes, ela avança. Mas, onde o filósofo perde o ânimo, ela continua, vai ainda mais longe, mais longe que qualquer tipo de saber.” Essa dimensão da obra de Clarice é muito expressiva. Ela não é filósofa. Não elabora sobre conceitos racionalmente estruturados. E, no entanto, põe a linguagem e o pensamento em contínuo movimento.

Há na escritora Clarice uma abordagem filosófica latente, uma espécie de lugar do destino. Concorda?

Conhecendo minimamente a obra e a biografia de Clarice, percebe-se depressa que essa ideia de uma entrega sem tréguas à escrita pode ser lida como uma espécie de destino, enquanto caminho procurado e encontrado. Lembro três nomes que o referem em contextos diferentes. O poeta Haroldo de Campos que fala da sua condição de “escritora que interiorizou o escrever como destino absoluto”. A ensaísta e escritora Hélène Cixous que se referiu a “uma mulher quase difícil de acreditar”, para dizer de imediato: “ou, melhor dito, uma escrita”. Cixous apresenta uma série de nomes, uma espécie de genealogia, na qual integra a escritora brasileira – Kafka, Rimbaud, Rilke, Heidegger… É interessante o facto de pôr Clarice ao lado de um filósofo. Para acrescentar que “aí onde respiram as obras mais exigentes, ela avança. Mas, onde o filósofo perde o ânimo, ela continua, vai ainda mais longe, mais longe que qualquer tipo de saber.” Essa dimensão da obra de Clarice é muito expressiva. Ela não é filósofa. Não elabora sobre conceitos racionalmente estruturados. E, no entanto, põe a linguagem e o pensamento em contínuo movimento. E o terceiro nome que eu queria referir é o de um amigo seu, o psicanalista Hélio Pellegrino, que captou admiravelmente a sua existência, o trabalho da escritora com a palavra: “o campo gravitacional criado por Clarice transcende a dimensão literária, para tornar-se, também, testemunho filosófico místico – e visionário”.

Clarice dá-nos muitos testemunhos dessa busca sem tréguas. Numa carta que escreve para uma das irmãs, em 1948, quando se encontrava na Suíça, diz o seguinte “já me baseei toda em escrever e se cortar esse desejo, não ficará nada. Enfim é isso mesmo.” A apurada autoconsciência do ofício, para quem a incumbência não significa facilidade, vem assinalar a insistência na ideia de que o caminho escolhido não é o da habilidade, mas o de uma deliberada travessia da paixão.

É curioso o facto de ela [Clarice] referir que um dos livros que a marcou mais, no tempo das primeiras leituras, tenha sido O lobo das estepes de Herman Hesse, mas é importante sobretudo pela consequência que adveio dessa leitura. Clarice refere que o livro a marcou de tal forma que ficou com febre e começou a escrever um conto que não acabava e que acabou por deitar fora. Este “não acabar” terá um reflexo digno de nota na sua literatura.

Já manifestamente persuadida por Machado de Assis, Monteiro Lobato ou Hermann Hesse, Clarice não começava por «Era uma vez…» as primeiras histórias que deu a publicar. Foi, desde logo, um sinal – só aparentemente insignificante – do colosso da literatura em que viria a tornar-se?      

Sim, o modo de Clarice começar, o modo como foi “chamada” talvez reflicta aquilo que virá a ser o seu caminho no futuro. Ela conta numa entrevista que, quando aprendeu a ler, devorava muitas histórias: “Eu pensava que livro era uma coisa que nasce. Eu não sabia que era coisa que se escrevia. Quando eu soube que livro tinha autor, eu disse: ‘Também quero ser autor’”.  Começa então a enviar os textos que escrevia para uma secção do Diário de Pernambuco chamada “O ‘Diário’ das Crianças”. Só que nenhum desses textos foi publicado. Percebeu muito mais tarde a razão dessa recusa. Segundo ela, os textos nunca foram publicados porque não contavam histórias, mas apresentavam “sensações”. Percebe-se que, desde muito cedo, existe uma diferença face ao modo de escrever e de encarar a literatura. É curioso o facto de ela referir que um dos livros que a marcou mais, no tempo das primeiras leituras, tenha sido O lobo das estepes de Herman Hesse, mas é importante sobretudo pela consequência que adveio dessa leitura. Clarice refere que o livro a marcou de tal forma que ficou com febre e começou a escrever um conto que não acabava e que acabou por deitar fora. Este “não acabar” terá um reflexo digno de nota na sua literatura.

A rarefação do enredo é um ponto que pode ser assinalado, mas também encontramos “histórias” nos seus livros. A ideia de algo que não acaba, que não tem princípio nem fim, merece a nossa atenção porque aponta para um campo onde se acolhem elementos que vão para além do convencional. Alguns livros apresentam essa explicitação ao nível gráfico. Por exemplo, os tracejados no início e no final de A Paixão segundo G.H. ou o recurso a uma vírgula no início de Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres e aos dois pontos no final do livro. Estes recursos não configuram um mero experimentalismo de superfície. São pequenas expressões relativas a um significado mais fundo que se apreende noutros planos e que tem a ver com a concepção do texto e do mundo em Clarice Lispector. Na verdade, sempre coabitaram nos seus textos o esforço de contorno formalizante e o irromper do ímpeto reflexivo que atinge um elevado grau de consecução no pendor abstrato de A Paixão segundo G.H.

Lembro a propósito uma das crónicas publicadas no Jornal do Brasil com o título “Lembrança da feitura de um romance”, onde se reporta ao processo de escrita de um dado romance. Afirma Clarice “Não me lembro mais onde foi o começo, sei que não comecei pelo começo: foi por assim dizer escrito todo ao mesmo tempo. Tudo estava ali, ou parecia estar, como no espaço-temporal de um piano aberto, nas teclas simultâneas do piano. “O não reenvio especificador a um romance concreto contribui para uma amplificação do significado e para um alargamento do âmbito reflexivo, que passa a reportar-se ao processo da escrita no geral.

Fotografia: Cortesia de Rogério Sousa.

 

Do premiado Perto do Coração Selvagem (1943) ao último título A Hora da Estrela (1977), o que é ser Clarice? Que tipo de autora é que se vai consolidando? 

O romance de estreia constitui uma diferença assinalada. Trata-se de um acontecimento. A jovem Clarice era totalmente desconhecida no meio literário. Alexandrino E. Severino, um português que fez o seu doutoramento sobre Fernando Pessoa, no Brasil, e que foi professor em Universidades americanas, tem a este respeito uma afirmação de que gosto particularmente porque descreve bem o que foi o impacto de Perto de Coração Selvagem. Diz ele que o livro desceu “sobre o Brasil como um meteorito formidável e estranho, radiantemente brilhante, demasiadamente poderoso e luminoso para ser ignorado”.

O lugar de Clarice Lispector na literatura brasileira afirma-se como um lugar à parte em relação às tendências dominantes, uma literatura que era (quando Clarice começou a escrever) e que continuou a ser, maioritariamente e em sentido forte, uma literatura sobre a terra. Em plena vigência de uma prática que privilegiava os textos bem fechados (como aconteceu com a escrita do romance brasileiro nos anos 30), a escrita fragmentária de Perto do Coração Selvagem acolhe o exemplo dos modernistas da década de 1920 (Mário de Andrade e Oswald de Andrade), mas trata-se também de uma escrita que desde esse primeiro momento, e cada vez mais daí para a frente, vai dialogar com uma galáxia de autores de outro quadrante, como Virginia Woolf, Marcel Proust ou Katherine Mansfield.

Neste primeiro livro encontramos uma escritora já amadurecida. Isso foi notado por vários críticos. Daqui para a frente, com os livros que vai escrevendo, Clarice reafirma a sua diferença, sempre experimentando formas novas, mantendo-se fiel ao seu modo, à sua verdade. Há uma coisa muito forte nela: é uma escritora que não faz concessões. Ela mesma o diz na única entrevista para a televisão. Também disse nessa entrevista, e muitas vezes repetiu, que não enfeitava, isto é, não “fazia literatura”, na acepção decorativa, e que escrevia de um modo simples. Dessa forma, a sua obra atinge zonas muito fundas e complexas do ser humano. É uma obra que não se enquadra em rótulos.

A sua condição de entrevistadora, no modo como ela entendia essas entrevistas (como conversas) também lhe serve para esclarecer alguns pontos em relação a si mesma. É o que acontece quando, certa vez, aproveita o momento para esclarecer o que na imprensa fôra dito acerca de “sua” prática de escrita “em transe”: “Lamento muito mas sou um pouco mais saudável do que inventam. Meu mistério é não ter mistério.”

Nessa célebre entrevista, a única concedida pela escritora à televisão, em 1977, Júlio Lerner, o entrevistador, gere silêncios, respostas abruptas e muitas entre linhas. Como é que interpreta esse ato único e isolado da vida pública de Clarice?

Essa entrevista é impressionante. Clarice quis que só fosse divulgada depois da morte. Impressiona também pelo facto de ter sido gravada nesse ano em que morreu. A gravação aconteceu na ocasião de uma ida de Clarice a S. Paulo e de um contacto, em cima do acontecimento, intermediado por Olga Borelli. As respostas lacónicas e contundentes mostram que a entrevista não foi tarefa fácil para o jornalista. Clarice não gostava da exposição pública e não gostava de dar entrevistas, embora ela própria tivesse entrevistado muita gente (concretamente para a revista Manchete, na secção “Diálogos Possíveis com Clarice Lispector”, entre Maio de 1968 e Outubro de 1969, e para a revista Fatos e Fotos, entre 1976 e 1977).

Apesar de tudo, ela concedeu um número considerável de entrevistas para jornais e revistas. E é interessante verificar que, em muitas delas, Clarice assume uma postura idêntica: resguardou-se em respostas concisas, às vezes lacónica, às vezes contundente. Essas respostas repetem-se frequentemente, de forma idêntica, cristalizando alguns tópicos que fixaram uma certa imagem, ajudando a alimentar o lugar-comum associado ao pendor enigmático da figura. Muitos críticos e leitores validaram essa imagem.

A sua condição de entrevistadora, no modo como ela entendia essas entrevistas (como conversas) também lhe serve para esclarecer alguns pontos em relação a si mesma. É o que acontece quando, certa vez, aproveita o momento para esclarecer o que na imprensa fôra dito acerca de “sua” prática de escrita “em transe”: “Lamento muito mas sou um pouco mais saudável do que inventam. Meu mistério é não ter mistério.”

Na sua obra, as personagens principais são dominantemente femininas. Um livro como Laços de Família, que reúne contos, muitos deles escritos na década de 1950, apresenta uma visão extraordinária que dá um destaque à mulher, nesses anos muito dependente de contextos familiares opressivos. Os laços unem, mas também asfixiam.

Há uma fotografia de Clarice, à saída do curso de direito, já na prática do jornalismo: sentada à mesa, única mulher entre homens. Clarice simboliza, através das suas crónicas e de alguns pseudónimos que adotou, uma luta pela emancipação e singularidade da mulher. Quer comentar? 

É muito interessante a sua pergunta porque nos leva a um ponto que se prende com a recepção da obra de Clarice que tem tido um vasto acolhimento em alguns sectores, concretamente no âmbito do chamado “feminist criticism”. Por alguma razão, um dos espaços pioneiros na difusão da obra de Clarice no estrangeiro aconteceu em França com a publicação da sua obra numa editora chamada “Éditions des Femmes”. E aí foi importante o grande entusiamo de uma escritora como Hélène Cixous. Mas em Clarice as coisas não são óbvias. Por exemplo, durante algum tempo, circulava uma certa ideia de escritora “alienada” das questões sociais e políticas, o que só se teria “resolvido” com a publicação de A Hora da Estrela, em 1977. E nada é menos verdadeiro. Claro que a sua obra não tem um cunho interventivo, ostentando uma bandeira. Mas é preciso ler nas entrelinhas. Há muito para ler nas entrelinhas. Aliás, em 1941, quando era aluna universitária, Clarice publicou, na revista dos estudantes da Faculdade de Direito, A Época, um artigo intitulado “Observações sobre o fundamento do direito de punir”. E nesse mesmo ano publicou outro artigo com o título “Deve a mulher trabalhar”.

Na sua obra, as personagens principais são dominantemente femininas. Um livro como Laços de Família, que reúne contos, muitos deles escritos na década de 1950, apresenta uma visão extraordinária que dá um destaque à mulher, nesses anos muito dependente de contextos familiares opressivos. Os laços unem, mas também asfixiam.

Já agora, em relação aos pseudónimos, há uma questão que deve ser encarada com algum cuidado. Encontramos cartas dos anos 1950 em que Clarice manifesta alguma reserva relativamente à assinatura de certos textos com o seu nome. De Maio a Outubro de 1952, a convite de Rubem Braga, passa a escrever no semanário Comício uma página feminina com o título “Entre Mulheres”, sob o pseudónimo de Tereza Quadros. Foram publicadas 17 colaborações. Creio que Clarice teria muita dificuldade em assumir estes textos no mesmo plano dos outros textos publicados com o seu nome. Depois da separação, quando regressa ao Brasil, como forma de compensar o orçamento, passa a escrever textos para outra página feminina (“Só para mulheres”) no Diário da Noite. Isto foi em 1960. Só que esses textos são assinados por Ilka Soares, uma conhecida atriz. A estas páginas seguiu-se outra colaboração, duas vezes por semana, para uma outra coluna feminina no jornal Correio da Manhã. A página, que durou até 1961, intitulava-se “Correio feminino – feira de utilidades”, e era apresentada com o nome Helen Palmer. Ora, estes textos estão muito longe do que vai ser a colaboração semanal de Clarice no Jornal do Brasil, numa coluna de crónicas, por um período de seis anos (de 1967 a 1973).

Fotografia: Cortesia de Rogério Sousa.

 

Tem vindo a trabalhar a obra de Clarice desde a década de 1990. Neste ano em que são sinalizados os 100 anos sobre o seu nascimento, o que é que continua por explicar em Clarice?  

É difícil acompanhar hoje o que se escreve sobre Clarice. E, no entanto, a sua obra é tão rica que continua a desafiar os intérpretes, em geral nas Universidades, no Brasil e em muitos outros países. Eu próprio continuo a trabalhar e a descobrir filões novos. Tenho em mãos um trabalho sobre a música e um outro de âmbito diverso, de pendor filológico, à volta do livro Um Sopro de Vida. Trata-se de uma tarefa complexa sobretudo pela minúcia que é exigida e que me tem levado muito mais tempo do que aquele que eu pensava.

Quem hoje vai a uma livraria à procura de obras de Clarice Lispector e compra o livro intitulado Um Sopro de Vida, olhando para a ficha técnica, encontra a referência da data da primeira edição, 1978, e percebe que se trata de um livro póstumo. Mas nem todos os leitores estarão atentos a isso. A questão é que nas primeiras edições deste livro (que foi publicado na editora Nova Fronteira) aparecia uma nota da organizadora, Olga Borelli, a amiga e secretária de Clarice que transcreveu os manuscritos inéditos e ordenou esses fragmentos em formato de livro.

Ora, acontece que desde há bastante tempo, desde que a edição transitou da Nova Fronteira para a editora Francisco Alves, isto é, desde 1991, que despareceu uma nota da organizadora do livro. Por isso é natural que qualquer leitor que se aproxime do livro (que não seja um estudioso de Clarice) pense que o livro foi organizado por Clarice tal como foi editado. E aqui surge o primeiro problema. A montagem efectuada por Olga Borelli é muito livre e muitas vezes afasta-se daquilo que é visível na leitura dos manuscritos (penso concretamente em sequências de falas entre o “Autor” e “Ângela”, as duas personagens centrais do livro). Mas existem muitos outros problemas. Por exemplo, há muitos fragmentos que apresentam uma clara indicação de pertença a este livro e que Olga Borelli não incluiu em Um Sopro de Vida, tendo-os transcrito num livro sobre Clarice que ela escreveu (Clarice Lispector. Esboço para um possível retrato). Estes fragmentos necessitam de ser integrados.

Enfim, depois existem mil e uma questões de minúcia que se impõem neste trabalho, no sentido de repor a letra (a palavra) de Clarice, de separar o espúrio do verdadeiro. Há momentos em que Olga Borelli suprime frases, exclui pedaços de uma dada sequência para os incluir noutra ou altera atribuições de falas (entre o “Autor” e “Ângela”). E existem ainda interferências de ordem gramatical como mudanças de tempos verbais, alterações das pessoas gramaticais, etc., que necessitam de ser corrigidas.

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