Ocorre-me a ideia, para começar, de que todos somos um bocadinho (muito, até) responsáveis por este mundo em que vivemos. Não apenas pela casa onde moramos. A responsabilidade humana vai para além desse cubículo que habitamos. A arte dá-nos, sabemos, essa conta e essa medida, porque nos permite ter uma voz mais audível (do lado de quem produz) e um escutar mais atento (do lado de quem assiste). Na exposição do artista e ativista chinês Ai Weiwei, Rapture, ainda na Cordoaria Nacional, é essa evidência que começamos por ter. A da capacidade, que a termos devemos saber usar bem, de passar uma mensagem, despertar consciências, transformar mentalidades. Em nome da diversidade que somos. Dos direitos e dos deveres que temos. Dos valores humanos.

Ai Weiwei é um artista difícil de definir. Atua de forma transversal nas artes, do cinema ao desenho e à arquitetura, do ativismo político ao audiovisual, do rock à fotografia e ao artesanato. Debate-se com e por causas, as humanas. E o ambiente. O seu território criativo é amplo, muito amplo, com raízes na cultura chinesa ancestral. E no termo “rapture”, que dá nome à exposição, encontramos essa dualidade que o artista gosta de explorar, entre o terreno e o espiritual, identificando nesse caminho entre um mundo e o outro o lugar para endereçar problemas reais, cenas concretas do dia a dia das pessoas, das comunidades, dos países. E das suas relações tantas vezes desavindas.

Nas peças que encontramos nesta exposição, com elementos do horóscopo chinês, passando por objetos oferecidos a divindades e barcos megalómanos de refugiados em fuga, somos postos em contacto com a sua apologia sobre os direitos civis, a liberdade de expressão, a resistência à opressão, a emergência da fragilidade que as condições ambientais agravaram. A partir de tradições, símbolos e significados esquecidos desde a Revolução Cultural de Mao Tsé-Tung (1966-1976), Ai Weiwei posiciona-se como um articulador das raízes mais antigas da própria humanidade. Fala-nos de atributos e referências que são do humano, não da cultura chinesa. Mesmo nas cenas retratadas de Ai Weiwei preso, em que somos levados para o interior do rapto versus exílio, em que agora está, acedemos às circunstâncias da interioridade humana. Do que fica incólume no pensamento, mesmo de um preso.

Ao longo da exposição, no papel higiénico, repetidas vezes representado para recuperar o primeiro ímpeto da pandemia, ou no gesto reativo dos seus dedos em inúmeras fotografias que emolduram a exposição, o que vemos, aliás, o que ouvimos, é um grito de ordem. Tanta cor, tantos materiais, tantas técnicas, tantas linguagens e tantas disciplinas artísticas para dar o grito. Que devemos ouvir. Para que nos reconheçamos naqueles que não são como nós.

Na sua linguagem híbrida mas incisiva sobre o Oriente e o Ocidente, Ai Weiwei, que hoje se refugia no Alentejo, fala-nos sobre os dois lados do mundo. Fala-nos desse lugar a meio caminho em que somos nós com o outro.

.

error: Content is protected !!