Não sendo líquida a forma como podemos classificar a obra de Clarice Lispector (1920-1977), um dos géneros em que a escritora incontestavelmente mais se fixou foi o conto. E encontramos, em diferentes editoras de cá e de lá do Atlântico, compilações de contos de Clarice. Além disso, um dos títulos que se posicionou como acontecimento literário no Brasil foi a publicação de um dos livros que reúne os principais contos da autora: Laços de Família (1943).

A edição que li é a do Curso Breve de Literatura Brasileira, uma coleção deliciosa de 16 volumes que faz um «itinerário de leitura» para permitir absorver algumas das mais relevantes referências literárias brasileiras dos séculos XIX e XX, com direção de Abel Barros Baptista.

No caso específico de Laços de Família, calha-nos em sorte o Posfácio de Carlos Mendes de Sousa, um dos principais investigadores da obra de Clarice. Carlos Mendes de Sousa fala-nos, referindo-se a Clarice, de «um lugar à parte, nascido de um enfrentamento em relação às tendências dominantes». Por oposição aos textos arrumados e estruturados da época de então, Clarice surge como uma «escrita fragmentária» mais alinhada com os grandes nomes da literatura internacional: Virginia Woolf, Proust ou Kafka. Dentro de portas, Clarice ganhava apenas uma comparação: com João Guimarães Rosa. O «modelo mimético do real» é completamente ultrapassado e desconstruído por ambos.

Laços de Família, um dos exemplos em que a escrita clariciana nos confirma a ousadia de enfrentar o até então estabelecido cânone literário brasileiro, é «um dos mais extraordinários livros de contos escritos em língua portuguesa».

Um dos mais emblemáticos contos, “Amor”, retrata a tendência para ver e segurar «o mundo como uma lista», assim como acontece no conto “A imitação da rosa”. Surge, entre a arrumação das listas e o sentido periclitante e não controlável da vida, uma repentina «linha de fronteira» que chama a atenção do leitor para uma «revelação epifânica», como é apanágio de toda a obra clariciana. No conto “Uma galinha”, tutelar para a compreensão de toda a obra, assistimos de facto a uma epifania: «De pura afobação a galinha pôs um ovo». Um simples e banal acontecimento domingueiro, por exemplo, transforma-se num elemento fundador. Entre os contos, encontramos três «em torno da figura animal»: “Uma galinha”, “O búfalo” e “O crime do professor de matemática”. Em toda a obra de Clarice deparamo-nos com a presença do animal e da sua centralidade para a descoberta ontológica e do propósito de vida dos seus protagonistas, como é claro em A Paixão Segundo G.H. Outro dos aspetos caracterizadores de Laços de Família é o desconhecimento introduzido entre os membros da família, que são muitas vezes «identificados de acordo com as funções dentro do núcleo familiar» e não pelo respetivo nome. E é na mesa, elemento cénico simbólico de agregação, que a família se une.

«De manhã cedo era sempre a mesma coisa renovada: acordar». Lemos num outro conto, “Preciosidade (Para Mafalda)”, num exercício de síntese, porventura, para todos os Laços de Família. Não fecha nenhuma ideia, é certo, como nenhuma outra passagem de Clarice. Mas é o legado deixado para uma radical mudança de vida.

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