Fotografia de destaque com cortesia de João Avelino.

 

C omo humilde leitora, mas apreciadora incorrigível da obra de Clarice Lispector (1920-1977), chamam-me particularmente a atenção os investigadores da incontornável autora brasileira e os que por ela têm não só um conhecimento maior, mas um assombro. Foi nesta premissa que cheguei à fala com Nádia Battella Gotlib, depois de, no início deste ano, ter assistido a uma sessão por ela conduzida sobre Clarice (permitam-me, já sabem, tratá-la assim). Fiquei absolutamente fascinada com a clareza e a profundidade, o encantamento e a distância, o saber e a vontade de descobrir que pude ver em Nádia Battella Gotlib. É professora na Universidade de São Paulo, especialista em literatura brasileira, literatura portuguesa e estudos comparados de literatura de língua portuguesa. Com quilómetros contados em todos os lugares de Clarice, Nádia Battella Gotlib assina obras incontornáveis para a compreensão sobre a vida e a obra da escritora, como Clarice, uma Vida que se Conta (1995) e Clarice Fotobiografia (2008). Tem a mão parametrizada para escrever Clarice e o olho treinado para a ver (em vez de olhar). No Entre | Vistas, Nádia Battella Gotlib conta-nos Clarice como se de uma história (fácil) se tratasse.     


Para começar, recupero palavras suas da 3.ª edição de Clarice Fotobiografia: «Uma pesquisa que envolve “histórias de vida” parece nunca ter fim». Esta premissa acentua-se quando a história a que nos reportamos é a de Clarice Lispector?   

Sob certo aspecto, sim. Clarice conservou documentos pessoais e profissionais que hoje se encontram, na sua quase totalidade, depositados em importantes instituições e que viabilizam pesquisas de peso. Mas devo acrescentar que nas entrevistas que concedeu e mesmo nos textos que escreveu, nem sempre nos legou dados precisos sobre alguns períodos da sua vida. É o caso da história da sua família. Se, por um lado, não presenciou o sofrimento da família judia na Ucrânia, por ocasião dos pogroms, porque nasceu quando já estavam viajando para o Brasil, por outro lado tinha informações a respeito, justamente por parentes mais próximos, mas esse assunto não fazia parte do seu repertório. A irmã Elisa Lispector é que nos conta essa parte da história da família, em textos de teor autobiográfico, decisivos para se traçar uma história dos seus ascendentes. Além disso, Clarice parece querer mesmo embaralhar pistas de referência histórica. O fato de divulgar 1925 como data de nascimento e não 1920, data que aparece em certidão original de nascimento registrada na Ucrânia, deu muito trabalho durante os primeiros anos de pesquisa, quando eu ainda não tinha tido acesso a essa certidão original. O histórico escolar não se encaixava com a idade que ela afirmava ter. Depois encontrei outras datas de nascimento em documentos de menor importância. Acrescente-se ainda o fato de que ela, por vezes, simplesmente se esquivava de oferecer dados sobre sua história. E cada documento que aparece, antes desconhecido, traz informações por vezes importantes para se continuar esse ‘jogo de encaixe’ que foi construir a sua biografia.

Quando se dá a sua descoberta de Clarice?

Houve várias fases. Uma primeira aconteceu quando era estudante de Letras na Universidade de Brasília. E ganhei de presente o livro Laços de família, publicado em 1960. Fiquei impressionada com esses contos porque a autora mobilizava o leitor fisgando-o a partir de fatos banais, corriqueiros, mas conduzia-o de tal modo que, a certa altura, o leitor não sabia mais o que, de fato, estava acontecendo. Depois da leitura de alguns desses contos eu nem sabia como ‘contar’ o que havia lido, ou seja, ficava meio perdida, sem rumo, num misto de descoberta e aflição… Aliás, esse mal-estar é mesmo uma característica da literatura de Clarice, que joga o leitor num difícil e ao mesmo tempo encantador mundo novo. Uma segunda fase aconteceu no início dos anos 1980, quando, depois de ministrar cursos de Literatura Portuguesa desde 1970 na Universidade de São Paulo, decidi dar cursos de pós-graduação especificamente sobre a obra de Clarice já ligados à disciplina de Literatura Brasileira. As leituras tornaram-se mais regulares com o envolvimento profissional. Formei um grupo muito competente de pesquisadores. E me dediquei a escrever sobre Clarice – sobre a obra de Clarice e, por consequência, sobre a vida de Clarice, pois não havia ainda uma biografia pautada em trabalho ‘de campo’, com base em depoimentos de pessoas que com ela conviveram, consulta a arquivos de instituições nacionais e internacionais (pois ela viveu 15 anos no exterior como esposa de diplomata), viagens às cidades onde ela morou, além, naturalmente, de matéria documental mais próxima da minha atividade anterior, de história das literaturas, de teoria e de crítica literária. Essa fase resultou na minha tese de livre-docência, em dezembro de 1993, parcialmente publicada no livro Clarice, uma vida que se conta, publicado em 1995. A partir daí, uma nova fase: contar o mesmo mas com suporte visual, atendendo, claro, às exigências dessa nova linguagem. Surgiu então o Clarice Fotobiografia, publicado 13 anos depois.

Na qualidade de biógrafa, foi aos «lugares onde Clarice morou». O que se sente quando se chega a um lugar de Clarice? 

São emoções diferentes. Eu morava em São Paulo, nessa época. Fui várias vezes ao Rio de Janeiro, a Maceió, a Recife. Pude rever tais cidades, que já conhecia, sob outro olhar, diretamente voltado para as relações que havia entre esses espaços e as fatias de vida da menina e adolescente Clarice. Visitei escolas onde ela estudou, os bairros onde morou, os lugares onde passeava, os prédios a que fazia referência. Encontrei algumas colegas de escola, parentes, amigos, vizinhos, enfim, grupo grande de pessoas que com ela tiveram algum tipo de contato. E fui a Belém, no estado do Pará, onde morou durante seis meses, já casada, antes de partir para a Europa. Quanto às cidades mais distantes em que morou a partir de 1944, essas me ofereceram maiores surpresas. É o caso de Nápoles, na Itália; de Berna, na Suíça; de Torquay, no sul da Inglaterra; e de Chevy Chase, perto de Washington, pois estas, não conhecia, embora antes até tivesse chegado perto. Descobrir exatamente qual o edifício em que ela morou em Nápoles, me fez entender porque em carta ela se referia ao “mar azul, azul”… Cada lugar que visitava era uma luz que se abria sobre detalhes de sua história de vida e de relações com os textos que escreveu, ficcionais ou não. Mas a emoção maior de todas eu experimentei quando cheguei ao lugar mais distante: Tchetchélnik, na Ucrânia, depois de três horas de carro de Kiév. Fui recebida com muito carinho pelo prefeito e pelas professoras do ensino fundamental. Nessa aldeia moravam milhares de habitantes judeus. Hoje não há mais nenhum. E lá está uma placa em homenagem a Clarice, na porta do prédio da Prefeitura e da Biblioteca Municipal.

E para quem, como a Nádia, nos deu já, quer um testemunho escrito, quer um mapa fotográfico de Clarice, que registo lhe terá sido mais desafiante? Que especificidades destaca?

Acho que foi conseguir criar pioneiramente uma biografia de Clarice Lispector, quando não havia nenhuma desse gênero, e ancorada em pesquisa de milhares de documentos que nem haviam ainda sido inventariados, como é o caso do acervo de Clarice depositado na Fundação Casa de Rui Barbosa, no Rio de Janeiro, que pesquisei a partir de início da década de 1980. Destaco também o fato de ter tido a oportunidade de continuar a pesquisa, de certa forma complementando o primeiro livro num segundo livro, em que conto a história de obra e vida a partir de imagens, numa narrativa visual e também documentada. Trazer para o público essa história até então não registrada, sob forma de matéria documental e visual, foi e continua sendo para mim muito gratificante. Vi uma Clarice que, para mim, renascia a cada dado de informação e numa progressiva construção de ‘personagem’, mas paralelamente através da pesquisa documental de ordem biográfica e a escrita de textos críticos pautados na leitura de sua obra. Que também não deixa de ser uma trilha feita de surpresas e espantos, costurada aos poucos, a cada dado de informação e de interpretação, colhido aqui e ali, devidamente analisado e ‘situado’ num percurso de história de vida e obra. Entre as surpresas, tive várias, mas destaco uma que tive depois de publicar esses dois livros. Ao pesquisar o acervo de Elisa Lispector, irmã mais velha de Clarice, recolhendo material para editar um livro com um texto inédito de Elisa, texto autobiográfico intitulado Retratos antigos (que foi publicado em 2011), encontrei foto do que eu supunha, segundo informações da família, ser o avô de Clarice, mas que ali no álbum que consultei se apresentava como o tio avô, de um primeiro casamento do avô. No mesmo álbum encontrei a foto do avô verdadeiro. Eis uma prova de que a pesquisa presta serviços à história da família para a própria família. Eis uma prova também de que não se esgota a história de uma vida.

Ninguém havia escrito como Clarice escreve. A percepção aguda para detalhes de mecanismo da mente humana viabilizou a criação de personagens com intensa vida interior.

No mesmo século em que também se destacaram Guimarães Rosa, Nelson Rodrigues ou Jorge Amado, Clarice surgiu com uma marca inigualável. Que principais ingredientes considera ter a sua obra para se ter afirmado com absoluta originalidade?

São várias marcas que merecem destaque. Uma delas é a da multiplicidade e complexidade de sua formação cultural. Havia várias camadas de diferentes culturas na sua formação: russa-ucraniana (quando nasceu a Ucrânia pertencia à Rússia), judia (por ascendência), nordestina, carioca (por adoção). Não assumiu a religião judaica, diferentemente da sua irmã Elisa. E afirmou que não acreditava na “besteira” de que o povo judeu era povo eleito por Deus. Viveu como ‘estrangeira’ em vários países por conta da profissão do marido diplomata. E, ao mesmo tempo, assumiu a sua brasilidade com forte convicção. “Sou brasileira e pronto”, afirmou em entrevista. Manifestou seu amor à língua portuguesa e sua alegria de ‘pertencer’ à literatura brasileira. Saliento também que sua obra tem características universais e também marcadamente nacionais brasileiras. E originalíssimas. Ninguém havia escrito como Clarice escreve. A percepção aguda para detalhes de mecanismo da mente humana viabilizou a criação de personagens com intensa vida interior. Atenta a relações parentais, criou uma espécie de mural de possibilidades de relacionamentos pessoais e sociais, sem se desvencilhar dos vulcões que incendeiam tais relações e que colocam a coragem do estar vivo à prova. Além disso, criou um mapa de percurso de construção da liberdade, mediante personagens flagrados no difícil mas necessário enfrentamento de seus fantasmas. Dessa forma trouxe para os leitores personagens crianças, adolescentes, adultos, idosos, com seus problemas, angústias, crises, e também com suas pequenas e grandes alegrias. Mostrou a diferença entre amor e paixão. E tudo isso, e muito mais, tendo a linguagem e a arte protagonizando sua ação criativa.

Talvez o que mais traduz seu repertório seja mesmo o de “inclassificável”.

Apesar de ser inclassificável, a obra de Clarice caracteriza-se por uma inequívoca diversidade de géneros: o romance, o conto, a crónica, o argumento infantil, o texto jornalístico, a entrevista, a tradução… Em que estilo ter-se-á realizado mais? Ou nem devemos sequer estabelecer essas fronteiras?

De fato, praticou vários gêneros literários e alguns mais propriamente jornalísticos. Os críticos se dividem quanto à eficácia da escritora: uns preferem a Clarice contista, pela coesão dos elementos constitutivos que mobiliza; outros, o romance; e assim por diante. Em cada gênero, reconheço um tipo de qualidade. Veja o caso das páginas femininas – e escreveu cerca de 450! Aí encontram-se fragmentos dignos de uma excelente escritora. Alguns podem ser lidos como ‘embriões’ de futuros contos e romances, como é o caso dos que tratam de ‘matar baratas’. Minha tese é a de que a tal receita que ela ‘avia’ em dois desses fragmentos, constitui uma ‘poética’ ou um tratado de como matar baratas, ou seja, de como ‘fisgar leitoras desavisadas’: ao espalhar açúcar (que atrai), gesso (que mata de dentro pra fora) e farinha (para fazer a liga ou mistura), a escritora traduz seu procedimento maléfico enquanto escritora: o de atrair mulheres distraídas com textos banais, supostamente destinados a mulheres, para fisgá-las no âmago, atingi-las de forma letal, provocando nelas uma nova visão, com novos valores. Quanto aos gêneros de romance, há que observar que Clarice mostra uma linha de coerência. Se escreve páginas femininas para ‘subverter’ o que se espera de tais páginas, assim também pratica o romance subvertendo o cânone, a tal ponto que passa a nem chamar de romance o que faz: Água viva é “ficção”. Um sopro de vida, ela registra como sendo “pulsações”. Por isso afirmou que “gênero não me pega mais”. Talvez o que mais traduz seu repertório seja mesmo o de “inclassificável”.

Na foto, Fernando Sabino e Clarice Lispector, em Clarice Fotobiografia, de Nádia Battella Gotlib.

 

Enquanto esteve ausente do Brasil, Clarice manteve uma regular correspondência com figuras incontornáveis do meio literário e editorial brasileiro, com destaque para Fernando Sabino. Que importância poderão ter tido estes laços para uma contínua ligação à escrita e ao Brasil?

Costumo afirmar que foi ótimo a Clarice se ausentar, ou então, não teríamos as suas cartas, dirigidas às irmãs, aos amigos, aos críticos, aos editores. Mas são poucos os conjuntos de correspondência ativa e passiva de Clarice. Sob esse aspecto, as cartas trocadas entre Clarice e Fernando Sabino se destacam, pois compõem um conjunto de 50 unidades, numa ‘conversa’ sobre fatos banais mas também sobre os respectivos trabalhos com a escrita, escritas durante 23 anos, de 1946 a 1969. Fica patente uma amizade sólida, que se manteve ao longo do tempo. É o caso também das cartas trocadas com outros amigos e amigas, como Lúcio Cardoso, Paulo Mendes Campos, Rubem Braga, Bluma Wainer, embora em menor número. O lote de cartas às irmãs, num total de 180, mas nem todas publicadas até o momento, tem o poder de revelar a rotina da escritora no exterior, e sob esse aspecto, numa amostra de mistura de gêneros: ora parece um diário, ora crônica de viagens, ora retrato de pessoas, ora pintura de paisagens…

Há um sentido humanístico nos textos de Clarice Lispector, que lhe assegura lugar marcado também no campo dos direitos das minorias, ao criar personagens sobretudo mulheres, prostitutas, idosas e homossexuais.

Assistimos recentemente ao centenário do nascimento de Clarice. Que requisitos têm a sua vida e obra para continuarmos hoje a falar de Clarice a partir de uma inequívoca atualidade?

A qualidade de uma obra literária pode ser constatada, entre tantos outros quesitos, pela sua capacidade de permanecer atual ao longo do tempo. Em tempos de pandemia, ressalto aspectos que até então eram, sim, considerados, mas não com ênfase. Confesso que para mim o tema da morte, tão frequente nos textos, em todos os gêneros que praticou, ganhou mais importância. O percurso de G. H. no romance A paixão segundo G. H. –, romance que, no meu entender, e também no da própria autora, foi o que mais atendeu às exigências de um texto de qualidade –, esse percurso da personagem ganhou novas configurações de leitura. É preciso vencer a morte, mas é preciso, antes de tudo, ter coragem de passar por essa via sacra que nos assombra desde março de 2020. Observo ainda que os textos de Clarice constituem um grito de revolta e indignação contra a miséria e a injustiça social, registradas, por exemplo, em tantas crônicas e no romance A hora da estrela, com personagens nordestinos migrados para a cidade do Rio de Janeiro na procura de melhores condições de vida. Vale alertar para o grito contra atitudes hoje infelizmente presentes num governo genocida e violento. É o caso da violência policial, anunciada no conto “Mineirinho”. E na sua obra encontramos um hino de amor à natureza – a plantas e bichos –, tema que revigora a esperança numa queda do nível de queimadas da floresta Amazônica, que provoca diariamente a morte de muitos animais selvagens. Há um sentido humanístico nos textos de Clarice Lispector, que lhe assegura lugar marcado também no campo dos direitos das minorias, ao criar personagens sobretudo mulheres, prostitutas, idosas e homossexuais. Para finalizar, diria que sua literatura é um hino ao ‘ser’ no mais amplo sentido, enquanto humanos e não humanos. É um hino à vida.

Não é fácil ‘ler Clarice’, ou seja, perceber aquilo que somos, portadores de uma condição humana, que inclui o bem e o mal. A leitura exerce esse papel humanizador. E nos lega esse mergulho no prazer estético, no espetáculo da beleza ou do “espanto inexplicado”, segundo palavras de Clarice.

Da sua experiência enquanto docente, qual considera ser a perceção dos alunos no estudo de Clarice?  

Há os que se entregam ao texto e há os que resistem a essa entrega. Diria que é necessário entregar-se, como em toda leitura, para depois se afastar e pronunciar-se, caso se queira, mediante juízo crítico. Essa entrega tem um preço. Não é fácil ‘ler Clarice’, ou seja, perceber aquilo que somos, portadores de uma condição humana, que inclui o bem e o mal. A leitura exerce esse papel humanizador. E nos lega esse mergulho no prazer estético, no espetáculo da beleza ou do “espanto inexplicado”, segundo palavras de Clarice.

Na qualidade de investigadora da sua vida e obra, já encontrou uma resposta cabal para esta mulher que se autoproclamou ser «uma pergunta»?

Fica a pergunta. Quem foi e é Clarice? Esse é um dos seus legados: perceber que a vida é mesmo um mistério.

 

 

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