Desde 2014, o ano fundador do Entre | Vistas, partilho no último dia de cada ano a visão panorâmica dos livros que li. Em 2020, foram mais de 20 e tantas histórias à volta dos livros e dos seus autores. Para além do Bode Inspiratório, projeto literário e artístico que contou com o Entre | Vistas como parceiro e que permitiu interagir com escritores de referência, destaco os 100 anos do nascimento de Clarice Lispector que me levaram a várias das suas obras e, ainda, jovens poetas que aqui entrevistei e cujos livros de estreia me situaram na poesia como bússola orientadora do que se é. Começo por aí.

Nesse mapa interior que a poesia é, o livro Sair de Cena, de Inês Francisco Jacob, da não edições, divide-se em dois grandes territórios do tempo: o depois e o antes. No primeiro, a autora dirige-se-nos diretamente através de uma relação que nos trata por tu, que nos fala ao coração. Introduz-nos ao «pardal», referindo a ideia «de que também os pássaros nascem/ a não saber caminhar/ mas eles aprendem logo o passo seguinte/ e voam» (poema “introdução ao pardal”). Neste ponto inicial, Inês Francisco Jacob transporta-nos para o sentido da vocação do poeta: caso tenha nascido com o talento da escrita, será uma questão de tempo entre o aprender a escrever e a partilha do que escreve com quem o possa ler. Para um importante testemunho sobre esta sua primeira publicação, Inês Francisco Jacob deu este ano aqui uma entrevista extraordinária e que ficará como modelo para quem se inicia na escrita e na saga de tornar público o que escreve.

Já na Feira do Livro de Lisboa, este ano carregada de simbolismos impostos pela pandemia, assisti ao lançamento do primeiro livro de André Osório, da Guerra & Paz Editores: Observação da Gravidade. Com apresentação de Fernando Pinto do Amaral e poemas lidos por Tiago Rodrigues, Prémio Pessoa 2019, Observação da Gravidade surge com a empatia dos gestos que nos tocam, das palavras que nos marcam, dos significados que nos alteram o olhar. O mesmo poeta que cofundou em 2019 a revista literária “Lote”, André Osório, conta-nos os seus próprios poemas. Escritos pela mão dos 21 anos que tinha no dia do lançamento e que, agora, são já (só) 22. Também André Osório teve a amabilidade de dar aqui uma entrevista, numa importante partilha sobre o ofício da escrita.

Da Feira do Livro de Lisboa, trouxe um outro livro, Com Borges. O escritor que nos deixou em legado a «leitura como felicidade», Jorge Luis Borges, é retratado pela memória de um outro escritor, Alberto Manguel, também argentino, que, na qualidade de livreiro e então apenas com 16 anos, foi leitor do decano da literatura mundial. Corria o ano de 1964. Como cenário, a Buenos Aires da época. Os olhos de Borges começavam a falhar demasiado devido a uma doença familiar que acabou por cegá-lo e ter quem lhe lesse em voz alta era uma necessidade. Entre 1964 e 1969, Alberto Manguel foi, assim, um dos privilegiados que leram para Borges. No livro Com Borges, o autor estrutura uma série de memórias sobre essa experiência, conversas partilhadas, referências bibliográficas, leituras e entre linhas.

Para além das linhas certas que Clarice Lispector deixou escritas, neste ano do seu centenário de nascimento, li vários dos seus livros e outros de autores que a estudam e admiram. Tive a sorte de entrevistar um dos seus maiores investigadores, Carlos Mendes de Sousa, que nos deixou no Entre | Vistas um repositório de ideias fundamental para continuarmos a (re)descobri-la.

«Mas sobretudo donde vem essa certeza de estar vivendo?». É uma pergunta, claro. O mesmo não é dizer (é muito mais relevante assim) que se trata de uma pergunta de Clarice, levantada no seu primeiro romance, Perto do Coração Selvagem (1943), que este ano li. É uma pergunta, ao lado de tantas outras, que Clarice coloca com apenas 23 anos, a idade que tinha quando publicou este seu primeiro livro. Clarice marca, desde logo nesta publicação, o tom que viria a definir, mais do que a sua escrita, o seu próprio pensamento. Um registo de inquietação, de curiosidade, de transformação interior, de questionamento permanente, ancorado numa escrita fragmentária, como em Virginia Woolf. Distingue-se totalmente do então universo literário brasileiro, desencadeando uma mudança de paradigma. Assume um lugar novo, nunca visto, com um quadro ficcional diferente de todas as tendências dominantes à época.

Clarice foi também alimentando a leitura feminina com a publicação de crónicas, em diferentes jornais, desde o tempo de faculdade até ao final da sua carreira, com epicentro nos anos 50. Para desenhar a linha de fronteira entre o seu registo literário e os textos femininos, assumiu os pseudónimos Helen Palmer, Tereza Quadros e Ilka Soares. É a coletânea desses trabalhos que podemos ler de uma assentada em Correio para Mulheres, uma fusão de textos antes publicados em Correio Feminino e Só para Mulheres. A verdade é que neste Correio para Mulheres, ao lado das dicas de beleza e sobre como atrair maridos, Clarice deixa transparecer aquilo que ela é, no estilo literário inconfundível. E até porque para Clarice, a sua página, a sua crónica, era a principal razão pela qual o jornal devia ser lido.

Para além de uma obra composta por romances, contos e crónicas que se tornaram referência incontornável na literatura brasileira do século XX, Clarice traduziu várias obras e entrevistou dezenas de personalidades de prestígio. No livro Entrevistas, da editora Rocco, encontramos coligidas várias dessas entrevistas, entre as quais ao Prémio Nobel da Literatura, seu amigo, Pablo Neruda, que lhe diz que todos somos Deus «algumas vezes». Entre os entrevistados brasileiros, contam-se nomes das mais diferentes artes e atividades, numa abordagem multidisciplinar muito interessante e num retrato do pulsar do Brasil da época. E o que poderá ainda inquietar-nos mais é o modo de perguntar de Clarice e as respostas que dela encontramos entre as questões devolvidas.

Numa das minhas visitas à Livraria da Travessa, foi-me recomendado este belíssimo livro: O Rio de Clarice: passeio afetivo pela cidade (Autêntica Editora), de Teresa Montero, uma das biógrafas de Clarice. Ao dar a conhecer os lugares icónicos de Clarice, Teresa Montero faz também uma apologia da relação com o Rio de Janeiro, contribuindo para um importante encontro entre o indivíduo e a sua cidade, a cidade e os seus habitantes. O Rio de Janeiro escolhido para esta apologia é o cenário onde Clarice viveu durante 28 anos. Ao circularmos pelos lugares de Clarice – Tijuca, Centro, Catete, Botafogo, Cosme Velho, Jardim Botânico e Leme –, vamos construindo a nossa própria perceção da cidade. Ruas, edifícios onde residiu e trabalhou, praças, praias, restaurantes, hotéis, padarias quiosques, livrarias, cinemas, parques e, sempre no centro da memória, o Jardim Botânico. Entre as referências ao espaço, surgem embaladas por uma viagem no tempo observações de Teresa Montero sobre uma Clarice indesligável da cidade e das pessoas com quem se cruzou e refletiu a literatura.

2020 foi também o ano em que voltei a outros autores essenciais, como José Eduardo Agualusa. No seu mais recente romance Os Vivos e os Outros, Agualusa recorre, mais uma vez, à sua personagem Daniel Benchimol, dos seus livros A Sociedade dos Sonhadores Involuntários e Teoria Geral do Esquecimento. Com Daniel começa. E com Daniel termina. Um escritor que se retirou do jornalismo. E que conheceu a Ilha de Moçambique através do poeta Luís de Camões. O anfitrião do festival literário e dos seus cerca de 30 convidados. O homem que, no período de isolamento a que ficam votados os participantes do evento, assiste ao nascimento de uma filha, Tetembua, em comum com a artista plástica Moira. O homem a quem, no final dos 7 dias, é confrontado o romance da sua própria vida. O lirismo tão torneado e eficaz de José Eduardo Agualusa chega para Benchimol e para todas as outras personagens, que se vão revestindo de características tão verosímeis, ao ponto de, não obstante a sua aparente verdade, parecerem inventadas para o que importa à escrita.

Num outro que também li de José Eduardo Agualusa, Teoria Geral do Esquecimento (2012), corre o ano de 1975. Uma cidade: Luanda, na véspera da Independência. Uma portuguesa, Ludovica Fernandes Mano, tratada como Ludo, desassossegada com o rumo dos acontecimentos, ergue uma parede para dividir o seu apartamento do resto do edifício e, por conseguinte, do resto do mundo. Aí permanece ao longo de 28 anos, isolada, entrincheirada, distanciada do outro. É este o argumento à volta do qual José Eduardo Agualusa desenvolve este o seu livro, premiado, um tratado sobre o medo do outro, o racismo e a xenofobia, mas também sobre o amor e a redenção. Não muito longe, simbolicamente, é certo, do que hoje (vi)vemos.

E também surpreendentemente atual, surge Etty Hillesum, a quem regresso de novo em 2020. No livro Cartas 1941-1943, encontram-se reunidas as missivas inéditas de, a e sobre Etty Hillesum, autora, singularíssima, com uma voz única e por sinal atual neste 2020 periclitante, exigente, até exasperante. A partir do espaço ao qual estava circunscrita, exíguo, frio e inóspito, e onde se entregava a «ler e a escrever à luz de um candeeirinho», Etty Hillesum escrevia a Julius Spier, a familiares e amigos. Nessas cartas, encontramos passagens dignas de nota e que surgem como uma importante bússola e uma chave interpretativa para qualquer um de nós, nas nossas circunstâncias mais ou menos pesadas. Depois de lermos Etty Hillesum, ganhamos um argumento indestrutível para passarmos a viver radicalmente. Exatamente como somos. No melhor de nós. Para a autora, há uma convicção profunda segundo a qual «os factos não interessam realmente na vida, apenas aquilo em que nos tornaram».

E porque foi com José Tolentino Mendonça que descobri Etty Hillesum, lê-la é um pretexto certeiro para a ele voltar, neste ano em que presidiu às comemorações do Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades. Com o subtítulo “O Poder da Esperança”, o penúltimo livro de José Tolentino Mendonça, O Que É Amar um País, é uma coletânea de trechos do pensamento do cardeal português, também responsável pela Biblioteca Apostólica e o Arquivo Secreto do Vaticano. Quaisquer trechos do seu pensamento já mereciam a nossa mais reforçada atenção. Estes excertos, acima de tudo, fazem uma radiografia do significado simbólico da pandemia que a todos chegou, com o que de verdadeiramente extraordinário isso tem ao surgir em cima do próprio tempo. Talvez até pudesse ter esperado uma maior distância sobre os acontecimentos. Mas José Tolentino Mendonça sabe quão importantes podem ser as suas palavras para uma compreensão urgente do que aconteceu, acontece e acontecerá. E o impacto no que somos.

Numa primeira leitura de um outro sacerdote, Paulo Duarte, chego a Rezar a Vida – A experiência da fé no quotidiano, que consiste num apelo ao essencial; numa espécie de grito para que nos concentremos no silêncio do nosso interior, do nosso ser; num reconhecimento de quem se é; numa evidência do que é luz e do que é sombra, para que nos lembremos da importância de uma e de outra. A visão sensível e sensibilizada do Padre Paulo Duarte chega em boa hora para nos esclarecer, caso ainda não o tenhamos percebido, quão novo e próspero pode ser o nosso caminho sempre que o quisermos recomeçar.

Do escritor, tradutor e editor espanhol, Javier Marías, membro da Real Academia Espanhola, escrevi aqui sobre Os enamoramentos, um livro que já havia lido em 2019 e ao qual voltei para reler partes e deixar o retrato. Os enamoramentos vão colocando à frente dos nossos olhos um mapa de interpretação do ser humano: «na realidade qualquer um nos pode aniquilar, do mesmo modo que qualquer um nos pode conquistar, e essa é a nossa fragilidade essencial». Todo o trajeto feito pelo autor, neste livro, desde o denso interior das suas personagens, passando pelo labiríntico contexto da morte e o complexo caldo das relações humanas, constitui, afinal, uma bússola para a descrição do enamoramento como «insignificante» e a sua «espera», ao contrário, como «substancial».

E porque me interesso por filosofia desde a adolescência, por mérito de uma extraordinária professora que tive, voltei a Platão. E sobre ele fazia-me já há tempos companhia, na mesa de cabeceira, um daqueles livros que acompanhavam, por um valor promocional, uma qualquer revista generalista: Platão – A verdade está noutro lugar, de E. A. Dal Maschio. Num momento em que me lembrei dessa professora, separei o livro para o ler e deu-se um encontro platónico.

Da norte-americana Lucia Berlin, uma estreia para mim, li Anoitecer no Paraíso, um tratado sobre a condição da mulher, a forma como vive o casamento e assume a conciliação entre as vertentes tão amplas da vida. Os filhos. O estudo. Os livros lidos. Os autores. As ideias. A «sensação de impermanência». E eis que este é o reflexo da vida como ela é. E também, de forma completamente transparente, o espelho da própria Lucia Berlin. Cujo lugar merecido na literatura ficou aquém do seu valor. Valeu-lhe a ideia, percorrida por Mark Berlin, o seu filho que coligiu os 22 contos, de que «a história é que conta».

Estreei-me, ainda, na angolana Djaimilia Pereira de Almeida, que assina um dos livros mais bonitos dos últimos tempos: A Visão das Plantas. Não tanto pelo argumento, mas pelo estilo, a forma de contar e de unir as palavras. É a história de um «capitão velho, retornado à casa de família desagravado para morrer em descanso». Se quisermos uma única ideia, é «um homem atrapalhado com os preparativos do seu enterro».

Por fim, numa abordagem visual, detive-me em Latitudes da Semelhança, que compendia um conjunto de fotografias que Isabel Nolasco, fotógrafa já aqui retratada, captou – ainda antes da sua objetiva – em 40 dias e 40 noites em que permaneceu em Omã e no Irão. Na sua disponibilidade para se aproximar, para depois de distanciar e com a distância revelada marcar um momento, um sentido, uma mensagem, um grito, Isabel Nolasco regista neste compêndio visual uma espécie de tratado de sociologia. Uma perspetiva da própria condição humana.

Este foi o ano em que mais livros li. Poderia juntar à lista Laços de Família e Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres, de Clarice, Cartas Perto do Coração, com as missivas trocadas entre Clarice e seu amigo e editor Fernando Sabino ou, ainda, Persépolis, de Marjane Satrapi. Sobre esses falarei em 2021.

Um ano tão exigente trouxe-nos, afinal, uma seríssima oportunidade de paragem, cujos dividendos – na relação com a palavra – devemos saber acautelar e preservar. Boas leituras!

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