O s dias velozes são tempo guardado no olhar experimentado de Veríssimo Dias. O engenheiro, biólogo e ecologista que deposita na lente fotográfica um talento maior. A fotografia sai-lhe dos dedos como assentam as luvas e voam os pássaros que tanto gosta de captar. É o decano. Nasceu em 1955, em Angola (Nova Lisboa, atual Huambo). Frequentou o ensino secundário em Luanda, licenciou-se e doutorou-se na ex-URSS. Por cá, foi professor, é agora projetista e consultor ambiental. A fotografia surge em uníssono e a fazer respirar melhor. É o pulsar da própria vida, aliás. Nas livrarias, encontramos 4 livros de fotografias de Veríssimo Dias. Um quinto, Verdália (2005) estará, quando muito, em prateleira de alfarrabistas. No dia em que lançou o seu mais recente, Portuguesas (2019), moderei um debate com algumas das suas retratadas. Havia (e há) um grito para dar a propósito do papel da mulher. Conheci-o no exato momento em que assinava um dos livros. Mal nos olhámos, tamanha era a agitação de um evento com muitas (outros tempos) figuras célebres presentes. Meses depois, em plena pandemia, Veríssimo Dias ligou desafiando-me para um retrato, como se o meu rosto tivesse ficado a marinar no seu olhar. Entre conversas generosas – porque Veríssimo Dias é também um homem de palavra(s) – combinámos esta (belíssima) entrevista.    


Fotografia de perfil: Cortesia de Patrícia Cardoso.

 

Quando é que pegou, pela primeira vez, numa máquina fotográfica? Que memória tem do início?

Eu teria, talvez, 15 ou 16 anos. Aconteceu em Luanda, usando a câmara de um tio. Pareceu-me que o mundo, ou as pessoas, entravam para a pequena caixa, por via de um silencioso convite. Consumada a entrada, eu deixava de vê-los até que, num passe de magia, a sua imagem começasse a aparecer lentamente no líquido de revelação. Essa experiência incorporou um encantamento que sobrevive até hoje.  Na altura não atribuí plenamente ao acto a noção de que estava a reproduzir a realidade ou a captar um instante – dois dos paradigmas importantes, mas não únicos, da fotografia. Isso viria mais tarde. Na altura, exercia apenas uma espécie de descoberta. Ela marcou-me de tal forma que lhe mantenho fidelidade até hoje. Fotografo diariamente, muitas vezes sem câmara, mas imaginando que a poderia ter comigo nessas alturas.

Com o tempo, fotografar acabou por se transformar num modo de eu ser feliz e numa maneira de exercer sentimentos e de acreditar (ontologicamente, quiçá). Diria, com Kertez, não basta olhar e ver, é preciso sentir. Creio que as minhas origens africanas determinaram em parte esse caminho.

O seu território de nascença, África, é unanimemente caracterizado por cheiros e cores que se eternizam na memória. Que impacto tem África no seu trabalho fotográfico?

Para além dos cheiros e cores que refere, associo África aos conceitos de extensão e lonjura. Vivi algum tempo no Sul e Sudeste de Angola, nas terras do fim-do-mundo. Curiosamente, viria a encontrar mais tarde essa dimensão na URSS e também no Alentejo. Creio que toda a minha fotografia, retratos incluídos, incorpora um certo padrão de distância, um útero de lonjura, não no sentido do afastamento, mas da vinda, da partida e, de novo, da vinda. Refiro-me às grandes extensões como forma de indagação. Creio, também, que fotografo sob uma matriz de paciência e estima pelo outro, seja pessoa ou natureza. Com o tempo, fotografar acabou por se transformar num modo de eu ser feliz e numa maneira de exercer sentimentos e de acreditar (ontologicamente, quiçá). Diria, com Kertez, não basta olhar e ver, é preciso sentir. Creio que as minhas origens africanas determinaram em parte esse caminho.

Como é que a ex-URSS, onde se licenciou e doutorou, influenciou a sua forma de pensar e, por conseguinte, de olhar (fotografar)?  

Avaliações políticas e históricas à parte, tenho saudades da URSS e dos anos de juventude lá vividos em meio académico e, brevemente, laboral.  Foi um tempo vital na minha formação. Se bem que muitas pessoas possam não entender, essa época consolidou em mim os valores da solidariedade, da generosidade e da camaradagem. Do Humanismo, também. Foi lá ainda que aderi firmemente à Dialéctica. Imageticamente, rememoro, amiúde, para além das extensões imensas, as bétulas (que não existem em África), os  snezhniki  (as primeiras flores a despontar na neve), as saunas russas, a monumentalidade de muita arquitectura institucional,  as grandes manifestações: Primeiro de Maio, Dia da Vitória, por exemplo.  Não posso deixar de citar a alvura do Inverno e a alma russa, que sentia e via.

Há um paradigma dominante na fotografia: a captura do instante, o registo do momento. Para o aplicar, a minha receita é singela: procuro num ápice juntar geometria e emoção, matemática e arte, técnica e sentido estético. Como vê, é simples (não fora ser difícil!!!).

Sendo o mundo tão impactado pelo ritmo de um tempo que não para e de um espaço que não se fixa, o que vai na cabeça de um fotógrafo quando entende que é aquele o momento de disparar a objetiva? Como coabitam a técnica e o sentido estético?

Há um paradigma dominante na fotografia: a captura do instante, o registo do momento. Para o aplicar, a minha receita é singela: procuro num ápice juntar geometria e emoção, matemática e arte, técnica e sentido estético. Como vê, é simples (não fora ser difícil!!!). Mas, a Dialéctica que evoquei acima ensina-me a questionar os dogmas. Assim, sem abandonar completamente a visão do instante decisivo, tenho vindo a aderir progressivamente a um cânone diferente: o registo, não do momento, mas da passagem do tempo, do seu fluir, da mudança. A atitude de registar a passagem do tempo implica fazer exposições longas e não curtas, o que exige alguns ajustamentos técnicos assim como o entendimento de que o produto final (a cópia, se quiser) não resulta de uma pré-visualização. A fotografia final é sobretudo interpretação e não reprodução/cópia. Ele comporta frequentemente imprevisibilidade e enigma. Tomando de empréstimo o conceito fundamental de Cartier-Bresson, mas virando-o do avesso, eu diria que, muitas vezes, a minha fotografia actual busca, não o instante decisivo, senão o minuto decisivo e a hora decisiva. Imagino até fotograficamente falando, o dia decisivo, a semana decisiva, o mês decisivo, o ano decisivo. E porque não (?), se tal me fosse consentido, o século decisivo, o milénio decisivo… Sob um ou outro Cânone, a minha fotografia norteia-se frequentemente por um pensamento de Minor White: one should not only photograph things for what they are but for what else they are. Ou seja, há um outro lado fotografável nas coisas. Há que buscá-lo.

A emancipação da mulher é uma causa actual e justíssima.

Nos seus livros mais consagrados, como Portuguesas (2019), Retratos da República (2010) ou Retratos de Abril, 35 anos depois (2009), o retrato surge como a forma mais constante de captar o objeto fotografado. Como descreve a morfologia e a fisionomia do rosto enquanto matéria-prima da fotografia?

O rosto é, de certa maneira, todo o universo!

Volto, ainda, ao seu mais recente livro, Portuguesas (2019). Estamos perante um olhar masculino sobre 150 mulheres de diferentes idades, especialidades e backgrounds. É um grito de urgência sobre o papel da mulher, em contínua discussão?

Sim, concordo. A emancipação da mulher é uma causa actual e justíssima.

Uma das suas características, justamente reconhecidas, é a humanização que imprime à fotografia. Beneficia da sua qualidade de escritor (que poucos conhecem), como quem está a escolher as palavras (luzes) certas para cada texto (retrato)?

Como lhe disse antes, ao fotografar, não me chega olhar e ver, tenho de sentir e de acreditar (ainda que seja filosoficamente). Sentir a fotografia é uma forma de humanismo.

E o que emprestam a engenharia e a ciência à fotografia? Régua e esquadro?

Sim. A geometria é uma constante em toda a minha fotografia. Mesmo que esteja apenas implícita. Uso frequentemente tripé. Bebi em profundidade as leis da óptica. Sou também um bom conhecedor das ciências naturais em geral (sobretudo as da Vida) e da Engenharia (sobretudo as que se relacionam com a água). Tudo isso se reflecte, seguramente, na minha fotografia.

É praticante de jogos de tabuleiro. Nenhum bom praticante de damas e sobretudo de xadrez joga apenas pelo entretenimento. Define aí uma tática que aplica muitas vezes na própria vida. É o que acontece consigo?

As Damas e o Xadrez, tal como a como a Fotografia, dão-me felicidade.

Deste 2020 que passa, absolutamente novo e atroz, o que cristalizaria numa fotografia?    

Prefiro não cristalizar, senão deixar fluir. Digamos que coloquei a minha câmara de grande formato, Sinar, (diz-me ela: tu é que me pertences) sobre o fiel Tripé Gitzo. No montante traseiro – uma  chapa Tri-X de 20 x 25 cm; abertura:  f/22; tempo de exposição – na opção bulb; objectiva: 300 mm, munida de um filtro de densidade neutra com 50 stops. Feito isto, a exposição que iniciei em 1 de Abril do corrente ano, prossegue… Não sei quando mandarei fechar o obturador, ou seja, o resultado desta fotografia é uma incógnita.


+ Informação Veríssimo Dias

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