T ive o privilégio de conhecer João Pedro Tavares na PWN Lisbon, organização sem fins lucrativos especializada em liderança e no desenvolvimento consolidado da carreira, em cujo board marcamos presença com uma visão comum para a igualdade de oportunidades. As suas intervenções são, sempre, absolutamente inspiradoras. Com mais de três décadas de experiência profissional em consultoria, em particular na área de Serviços Financeiros, João Pedro Tavares é Managing Director da StormHarbour. Adiciona a esta responsabilidade várias outras: é presidente da ACEGE – Associação Cristã de Empresários e Gestores e do Conselho Estratégico do IES – Social Business School e integra, ainda, a Junior Achievement Portugal, organização de que também foi presidente. Colabora com a Fundação Calouste Gulbenkian e a Fundação Gaudium Magnum, bem como com múltiplas outras instituições. Licenciado em Engenharia Civil e com pós-graduação no INSEAD e na Universidade Católica Portuguesa, tem 58 anos de idade, é católico, casado com a Clara e pai do João, da Maria, da Madalena e da Joana. No caminho que tivermos a sorte de fazer ao lado de João Pedro Tavares, assistimos a uma coerência de valores e práticas de gestão, tantas vezes parcos. Nesta conversa, temos a oportunidade de conhecer, a partir das suas amplas responsabilidades em dezenas de organizações, o pensamento do líder, do gestor e do homem de fé, neste tempo de crenças vãs.


Como é viver uma vida profissional no mundo da consultoria e das finanças e procurar alargar a uma visão que vai para lá dessa realidade?

Antes de mais, obrigado pela oportunidade para esta conversa. As realidades não são estanques e interligam-se. De facto, a atividade que mais me tomou a minha vida foi a profissional (intensa, diga-se), no passado e no presente, em mais de 30 anos. É aí que dedico o meu maior esforço, mas procurando sempre promover uma unidade de vida e atendendo a múltiplas realidades. A vida não é estanque e os valores, os princípios, devem ser sempre os mesmos, no respeito aos outros, na criação de valor, no serviço aos clientes. Na minha atual empresa e na anterior, a integridade, a confiança e a excelência são alguns dos valores de base e isso é muito importante. Não é algo que se proclame, mas que se vive.

Se ser líder é o cumprimento de uma missão, é talvez dos serviços mais responsabilizantes que se tem. É neste contexto que deve ser entendida a liderança, como o exercício de um serviço. Onde a missão se sobrepõe ao cargo ou à pessoa.

Estou a falar com um líder e é por aí que seguimos a conversa. Uma qualificação que sempre atribuis à liderança é a de ser uma «liderança servidora». Queres explicar?  

De facto, a liderança não é o exercício de um cargo. Muitos de nós, sem estar no exercício de um cargo formal, somos líderes na forma como nos comportamos, atuamos e, sobretudo, como nos responsabilizamos. Este é um aspeto muito importante, pois um líder assume a responsabilidade na primeira pessoa e não se desculpa com terceiros. Se o fizer de forma recorrente, assume-se mais como uma vítima “dos outros”. Mas, como dizia, ser líder não é o mesmo que ser chefe. Este último é, muitas vezes, o exercício de um cargo, de um mandato e, muitas vezes, deturpado na forma como envolve os outros e como assume a sua responsabilidade pessoal. Se ser líder é o cumprimento de uma missão, é talvez dos serviços mais responsabilizantes que se tem. É neste contexto que deve ser entendida a liderança, como o exercício de um serviço. Onde a missão se sobrepõe ao cargo ou à pessoa. Onde o impacto se torna mais importante que o exercício de uma “chefia”. Onde o envolver dos outros, na promoção de uma inteligência coletiva e colaborativa ultrapassa o indivíduo. Um líder servidor é reconhecido por tudo isto mais do que pelas suas características ou competências pessoais. Mas o “teste ácido” para reconhecer a importância e relevância da sua missão é quando promove o desenvolvimento de novos líderes que o possam substituir no futuro, melhor ainda do que ele mesmo. Quando um líder muito esforçado cria dependências de si mesmo, confundiu o bem maior da sua missão com algo de aparentemente bom, o seu esforço.

É um projeto [PWN Lisbon] que promove a inclusão e justiça, acolhendo a diversidade, alertando para as discrepâncias e para as melhorias decorrentes de modelos assentes na diversidade e na participação ativa das mulheres na sociedade.

Permanecemos numa sociedade com profundas discrepâncias no acesso a oportunidades para o exercício da liderança (a mais formal, se quiseres). Com a convicção de que é possível contribuir para a mudança, és voluntário na PWN Lisbon. Qual o propósito desta colaboração?  

Faço-o porque reconheço o enorme mérito da PWN Lisbon (Professional Women’s Network) em endereçar e trazer para a agenda um tema absolutamente crítico e que é a igualdade de oportunidades para todos e, no caso presente, para as mulheres. É um projeto que promove a inclusão e justiça, acolhendo a diversidade, alertando para as discrepâncias e para as melhorias decorrentes de modelos assentes na diversidade e na participação ativa das mulheres na sociedade. Mas não é só uma questão de inclusão, justiça ou de equidade. É, sobretudo, uma enorme mais-valia para a empresa a promoção da diversidade, constituindo-se como um fator de promoção de tensões virtuosas, de inovação, de busca de alternativas. Estou também neste projeto, muito enriquecedor, porque aprendo muito com os restantes membros do Board, o seu propósito e abordagens que se fazem, porque sou pai de 3 mulheres jovens e quero contribuir, na parte que me toca, para um mundo mais justo para as minhas filhas.

Quais são, do teu ponto de vista, os principais desafios hoje colocados às organizações?

Os desafios são múltiplos. Por um lado, é uma responsabilidade particular e pessoal dos líderes que têm obrigação de promover um ambiente com igualdade de oportunidades e, sobretudo, acreditarem na enorme mais-valia da diversidade na participação das mulheres, em particular, no exercício da liderança. Existem inúmeros preconceitos, modelos tradicionalistas, ultrapassados e, porque não dizê-lo, preconceitos errados relativamente à masculinidade da liderança e, com isso, de resistência à mudança. Por outro, a família (dos colaboradores) é um stakeholder importante numa organização e que não pode ser ignorado. Nesse sentido, cabe aos líderes (a múltiplos níveis da organização) promoverem condições para as famílias dos seus colaboradores…

A família… Qual a importância da família para a experiência de uma sociedade e, logo, de dinâmicas e práticas organizacionais mais conexas e cooperantes? 

A propósito da família, precisamente, num outro projeto em que colaboro, através da ACEGE, apoio a Fundação EFR (empresas familiarmente responsáveis), onde concluímos, num estudo, que há uma perda de mais de 20% de talento, pois as pessoas não podem ou não querem assumir responsabilidades para que estão capacitadas devido a obrigações familiares. E mais de 80% das pessoas são mulheres sobre quem recaem maiores responsabilidades familiares, seja no cuidado de ascendentes ou de descendentes. É hipócrita falarmos nas empresas sobre o desenvolvimento e a retenção de talento e depois ignorarmos esta situação. Uma empresa que se diga comprometida com estes temas tem de promover oportunidades claras, visíveis, reconhecidas para todos e, em particular, para as mulheres. Por último, temos de cuidar da felicidade dos nossos colaboradores, onde as condições de trabalho, os equilíbrios de vida são fundamentais. Sabe-se também que pessoas mais felizes são mais produtivas, mais comprometidas e são talento que se desenvolve e retém melhor resultando também em menores custos.

Esta visão “desumanizada”, em que o colaborador é um número mecanográfico, um recurso entre outros, contribuirá para enormes problemas no futuro. É nesse sentido que não poderemos “perder o norte”, o propósito das organizações, a sua finalidade no mundo, o seu sentido de missão, o seu impacto e valor, em termos financeiros, económicos, sociais, familiares, comunitários, ecológicos. É o que o Papa Francisco chama de “ecologia integral”.

Sei que te insurges face à expressão recorrente “recursos humanos”. Como deve chamar-se, do teu ponto de vista, a área que numa empresa emprega e retém pessoas? 

Se me permites, vou dar um passo atrás para o explicar. Há várias expressões que se normalizaram no passado mas que hoje estão desajustadas. Uma delas tem a ver com a divisão entre “profit.vs.non-profit”. O mundo não se pode dividir entre os que têm lucro e os que não se orientam a esse objetivo. Tem de se promover uma linguagem mais comum e inclusiva, que unifique. A finalidade de uma organização é que crie valor e promova a sua distribuição com justiça, promovendo a inclusão (este um papel também a cargo do Estado). Do mesmo modo, a denominação “Recursos Humanos” ou “RH” encontra-se desadequada e tornou-se como “uma rasteira” que aceitámos no passado e usámos sem problema mas que hoje é absolutamente desadequada e inapropriada, na minha visão. A centralidade de uma qualquer organização é a Pessoa e a sua dignidade. No mundo do trabalho sempre se conviveu com múltiplos recursos, como sejam os financeiros, os de matéria-prima, os de equipamentos, os de tecnologia, os de infraestrutura, etc. Com a crescente introdução de recursos tecnológicos, que deverão contribuir com capacidades absolutamente extraordinárias (e que aprovo), mas que visam, sobretudo, substituir recursos existentes, em particular os “recursos humanos”. Esta visão “desumanizada”, em que o colaborador é um número mecanográfico, um recurso entre outros, contribuirá para enormes problemas no futuro. É nesse sentido que não poderemos “perder o norte”, o propósito das organizações, a sua finalidade no mundo, o seu sentido de missão, o seu impacto e valor, em termos financeiros, económicos, sociais, familiares, comunitários, ecológicos. É o que o Papa Francisco chama de “ecologia integral”.

Estiveste à frente da Junior Achievement e criaste a partir dessa organização pontes entre a academia e as organizações. Que diálogo consideras que deve ser estabelecido entre os dois mundos no sentido da melhor capacitação para ingressar no mundo do trabalho?

Já atrás procurei explicar um pouco o que é a “economia convergente” (em que o mundo não se divide entre “profit.vs.non-profit”), mas promove uma linguagem, propósito e finalidade comum à volta da criação de valor económico, social e ecológico e qualquer organização, de qualquer tipo, está chamada a isso. Mas é convergente também na inter-geracionalidade, na forma como se aproximam gerações distintas. Ou na promoção do voluntariado e exercício da cidadania, levando profissionais às escolas e alunos às empresas. Ou no desenvolvimento de capacidades fundamentais como o espírito de empreendedorismo, de trabalho de equipa, de autoconhecimento, de comunicação. Foi o que procurámos promover neste marcante projeto com resultados extraordinários em todos os participantes, os alunos, as escolas, os professores, os voluntários, as famílias. No passado vivíamos num mundo com 3 ciclos separados em silos verticais, iniciando um quando terminava o outro, ao longo da vida: Estudo, Trabalho, Reforma. No futuro, viveremos num mundo em que as 3 realidades irão coincidir ao longo da vida. O estudo e educação acompanham-nos desde o início até ao final. O trabalho desde que surge acompanha-nos até ao final (sendo remunerado ou voluntário/ social, naquilo que se denomina de “envelhecimento ativo”) e a reforma (como será no futuro?, certamente distinta…) mas, sobretudo o lazer, acompanhar-nos-ão ao longo de toda a vida.  É para este contexto que teremos de preparar as pessoas.

Lembro de muitas vezes dizer que tinha um critério na seleção de pessoas para as minhas equipas: a capacidade que têm de se auto-motivar, independentemente de terem ou não terem sido cumpridas as suas expectativas. São os que não desistem, os que não se movem por estímulos exteriores, mas vivem alicerçados em convicções interiores. Estes são os que vivem com um propósito, com sentido de missão.

O filósofo francês Edgar Morin, já quase com 100 anos, tem vindo a reforçar a ideia de que nas escolas e universidades é preciso ensinar a «compreensão humana». Posso assumir que, ainda que não venha em nenhum currículo, é este um critério para as pessoas que admites para as tuas equipas?

Lembro de muitas vezes dizer que tinha um critério na seleção de pessoas para as minhas equipas: a capacidade que têm de se auto-motivar, independentemente de terem ou não terem sido cumpridas as suas expectativas. São os que não desistem, os que não se movem por estímulos exteriores, mas vivem alicerçados em convicções interiores. Estes são os que vivem com um propósito, com sentido de missão. Os que não se autorreferenciam e, por isso mesmo, mais capazes de desenvolver essa “compreensão humana”. Onde o erro é uma enorme oportunidade de crescimento. Onde a promoção de uma cultura de verdade é essencial. E o espírito de nos abrirmos aos outros, de estabelecer parcerias, é diferenciador. Esta é uma responsabilidade das famílias na educação, das escolas e da universidade, no saber e capacitação, dos líderes e empresas, na promoção do desenvolvimento dos colaboradores como pessoas, como cidadãos ativos e responsáveis na sociedade. Por outro lado, conforme já referi acima, o mundo futuro não será nada estanque, mas inter-relacionado. As parcerias predominarão. As múltiplas gerações irão cooperar mais ainda. Os mais velhos, ao invés de descartados, continuarão ativos na sociedade, no enorme saber e experiência que acumularam.

Na qualidade de presidente da ACEGE, que conciliação entendes ser hoje fundamental e inegociável entre a visão económica e os valores cristãos?

Considero fundamental a coerência e unidade de vida, a autenticidade, promoção da ética, sabendo que não há uma ética empresarial e outra (distinta) pessoal. É uma única e mesma ética. Mas, como já anteriormente referi e se pode subentender, no exercício de um serviço, de uma missão, na promoção da economia do bem-comum e na defesa da dignidade da pessoa, assentes na solidariedade e na subsidiariedade. Pode parecer um conjunto de palavrões, de metas inalcançáveis ou um somatório de propósitos impossíveis, mas, pelo contrário, são promotores de uma maior plenitude e maior-valor. Esta integralidade, assente na pessoa, mas também na sua relação com o mundo, com os outros, com as realidades que a circundam, é fundamental.

A promoção da cultura e da arte tem subjacente a necessidade de o homem entender as suas raízes, a sua história, mas, sobretudo, ter um olhar diferente sobre si e os outros, sobre a própria natureza, com maior respeito e, sobretudo, maior beleza e entendimento.

A partir da tua relação de colaboração com instituições como as Fundações promotoras da cultura (Calouste Gulbenkian, Gaudium Magnum), qual é do teu ponto de vista a importância da cultura numa sociedade em mudança? 

A promoção da cultura e da arte tem subjacente a necessidade de o homem entender as suas raízes, a sua história, mas, sobretudo, ter um olhar diferente sobre si e os outros, sobre a própria natureza, com maior respeito e, sobretudo, maior beleza e entendimento. São inúmeros os problemas que resultam de uma visão míope ao excluírem-se estas componentes essenciais. Cresce a intolerância e o radicalismo. A ignorância permite que se promova o disparate disseminado e se levem a atitudes extremas que, inclusive, podem promover a destruição do património histórico. A cultura é uma componente fundamental e absolutamente imprescindível da educação e estas fundações, entre outras, são traves mestras desta cultura na promoção que fazem.

Essa será também a visão aportada no Portal VER | Valores, Ética e Responsabilidade, outro dos projetos que lideras, juntando contributos editoriais que, através dos autores, dos temas e dos conteúdos, propõem-se validar valores e atestar conhecimentos em áreas de importância estratégica para a sociedade. É um «VER» na linha do «ouvir com outros olhos» de João Lobo Antunes?  

Precisamente e já anteriormente procurei responder a estes aspetos: promover uma nova consciência, assente em valores, em convicções profundas para, com isso, termos uma maior firmeza nas decisões e um maior sentido de compromisso com os outros. Como exemplo, acreditamos que o Amor e a Verdade são, de facto, valores de gestão, de liderança, critérios para as decisões e ao trazer estes valores não-económicos para o mundo do trabalho criamos tensões que não “descafeinam” o modelo, mas, pelo contrário, o tornam mais completo, mais pleno, mais virtuoso. E haverá lugar para a compaixão, a misericórdia ou o exercício da humildade? A resposta é sim, mas isso é um novo caminho de descoberta… Importa dizer que o mundo dispõe de todos os recursos e capacidades (já se referiu, num crescendo de capacidades tecnológicas sem igual) para resolver todos os seus problemas, desde logo, o da pobreza ou, ainda, o da proteção do planeta (sendo que não sobreponho o segundo ao primeiro). Nesse sentido, o maior desafio está no caráter, no sentido de serviço, na promoção do bem-comum dos líderes, sobretudo. Mas, tudo isso, daria uma outra discussão muito interessante…

Para terminar, três perguntas numa só: que aprendizagem é possível fazer nesta situação pandémica? O que devemos reter enquanto sociedade? Alimentar e construir a esperança em tempo de crise é uma responsabilidade inequívoca da liderança?

Uma resposta muito simplificada para estas 3 perguntas. Creio que tomámos consciência de que somos muito mais frágeis do que pensávamos. Precisamos uns dos outros mais do que nunca. O vírus propaga-se num mundo globalizado de forma imprevisível e imparável. Se ele tem variantes, também nós teremos de as ter. O que estava certo e correto no passado não é solução nem caminho de futuro. Por isso mesmo temos de olhar, decidir e agir de forma distinta, com novos modelos que promovam muito do que já anteriormente referi. Não deixo de ter um olhar de esperança para o futuro. O mundo uniu-se no combate a um inimigo comum. Que mantenha essa unidade no futuro e esse espírito de colaboração. E que os líderes sejam humildes e assumam a necessidade de mudança por um mundo melhor. Reconhecê-lo não é sinal de fraqueza, mas de sabedoria.

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