Em plena autoestrada, duas carrinhas de caixa aberta exibindo dinossauros de um parque de exposições espanhol largavam o primeiro sinal sobre o que viria a ser mais uma viagem (no mínimo) divertida. O sol baixou a guarda num dia ou noutro, mas nem os chuviscos ocorridos beliscaram a áurea dos dias bem passados num périplo recente pelo norte do país, com arranque no Minho.

Périplo a norte com início no Minho 84

Com início em Ponte da Barca, foi possível reconhecer um conjunto de iniciativas culturais e artísticas dinamizadoras das populações, dos seus costumes e tradições. Gastronómicas, claro, pelo meio. Numa casa de charme metida no meio da serra (parecia ter sido ali embutida em barro), foi possível avistar o verde das vinhas e escutar aquilo a que me referi, elogiando-o a quem ali pertence, o silêncio mais silencioso. Ali, no cimo de Ponte da Barca, não se ouvia à noite mais nada do que aquilo que possamos imaginar ser, efetivamente, o silêncio.

Périplo a norte com início no Minho 85

No passo destinado a seguir estava Viana do Castelo, com a sua Ponte Eiffel ao longe, pontuada pelo Rio Lima. Na Praça da República (a norte sempre se encontra uma Praça da República), no edifício dos antigos Paços do Concelho, assistiu-se à exposição “Os Lusíadas, 10 Cantos por 10 Ilustradoras”. Percorrendo a Rua da Bandeira, extensa, charmosa, a Galeria de Arte Goca, também uma oficina de cerâmica e azulejos com a exposição de José Gonçalves da Silva EXPREfeições (cuja designação achei deliciosamente encantadora). Neste lugar, Goca, curiosos de todas as idades podem treinar os seus dedos e mãos na cerâmica, nas artes, no ofício de moldar o pensamento ao tocar do barro. Vende, expõe arte e faz workshops. Na hora de partir, dois lugares tornaram-se obrigatórios: a Estátua à Mulher Vianesa, um tributo à mulher que guarda, à mulher que recebe e acolhe; e o Santuário de Santa Luzia, ponto máximo na cidade mais a norte, no litoral português.

Périplo a norte com início no Minho 86

Ponte de Lima surgiu imediatamente a seguir com a ponte romana num pano de fundo súbito. Entre as Torres de São Paulo e da Cadeia Velha e o Largo de Camões, destacou-se um lugar incrível: a Casa da Terra, para comer e também carregada de arte e objetos de artesanato da autoria local, para além de acomodar um anfiteatro, lugar de cultura e encontros para aumentar conhecimentos. À entrada da Igreja de Santo António, sobressaiu um marco indicando o caminho de Santiago, que por ali se faz. O Rio Lima sempre no horizonte. Depois, num rasgo metido pelo meio da viagem, chegaram Caminha e a Foz do Minho. E Valença, com a sua Fortaleza e as dezenas de lojas com toalhas e lençóis.

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O périplo incluiu Braga, onde também há uma Praça da República. Nesta cidade, linda e organizada, foi possível passear demoradamente na Rua do Souto, longa. Impuseram-se o Arco da Porta Nova, a Sé de Braga, a Universidade do Minho, a Biblioteca de Braga com livros à entrada de Natália Correia ou Eugénio de Andrade. E o Sameiro, claro. Guimarães tornou-se obrigatório, depois. Do alto do castelo, esse local inaugural do que somos, ficará sempre na memória a figura imponente do primeiro rei de Portugal, D. Afonso Henriques. Mas em Guimarães encontramos espaços de cultura, artes e encontros, como o Rimas & Tabuadas, e a sociável Praça de São Tiago, que nos leva a uma frase sintomática do que é Guimarães: “Ler é Património”.

Périplo a norte com início no Minho 88

Veio a seguir Aveiro, com o famigerado passeio no barco moliceiro, nos canais da cidade, de onde se fez um ponto de observação privilegiado para os edifícios em estilo Arte Nova. Ovos moles fizeram as delícias desejadas logo à chegada. E um almoço extraordinário junto ao mercado, com dezenas e dezenas de turistas neste lugar urbano que bem recebe.

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Coimbra finalizou o périplo. Aqui tudo o que a cidade mostrou fala automaticamente de história, de cultura e sabedoria. A Universidade de Coimbra fez-se altiva, com o Museu da Ciência (inserido num antigo edifício de Jesuítas), o Palácio Real (com a Sala dos Atos no epicentro) e a Biblioteca Joanina (onde se encontram guardadas algumas das mais emblemáticas obras dos séculos XVI, XVII e XVIII da Europa culta, como Os Lusíadas, entre um espólio de cerca de 60 mil exemplares). Entrar, no meu caso pela primeiríssima vez, nesta casa da sabedoria, que é um cofre forte de livros edificado sob o patrocínio de D. João V, foi um daqueles privilégios de beleza que a vida nos guarda para o momento certo. Nos alicerces do edifício da Biblioteca Joanina, encontramos uma antiga prisão e temos ali a oportunidade de permanecer alguns segundos dentro dos parcos metros quadrados das celas, imaginando como será residir num espaço tão exíguo em consequência da prática de um crime. Ultrapassada essa parte, foi hora de subir à biblioteca propriamente dita e aí há um olhar deslumbrado que não se domina, porque não há como dominar o espanto sobre o que é absolutamente maior do que nós e a nossa época. Numa palavra, o espanto sobre o intemporal.

No fim, antes do regresso a Lisboa, uma sobremesa premiada, o Pudim das Clarissas, maravilhoso. E, ainda, o Portugal dos Pequenitos, numa homenagem simultaneamente à infância (e à capacidade de voltar com uma nova geração pela mão) e ao olhar inaugural com que devemos partir sempre que iniciamos uma nova viagem. Porque aquilo que veremos poderá dar origem a algo que nos possa mudar irreversivelmente a vida. É isso que se espera de uma viagem bem feita: que não se regresse como se partiu. Que no regresso haja um norte novo.

Périplo a norte com início no Minho 90

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