Os livros de uma estante que vem do quarto em casa dos pais. E que absorveu as descobertas literárias que o tempo aprofunda. E que espelha a rua principal da sala, em detrimento da televisão, onde as notícias que passam precisam dos livros para uma espessura maior.   

Vitória lançou mãos ao trabalho e depois de desligar o computador aventurou-se na estante dos livros, há algum tempo a precisar de uma limpeza e reorganização. De A a Z, como dispunha todos os livros em cada categoria, a própria estante carecia agora da visão editorial que sempre lhe imprimia. Na parte da espiritualidade, por onde começara a empreitada, manuseou os vários livros de José Tolentino Mendonça e a Bíblia traduzida por Frederico Lourenço. O pano do pó esticou-se para chegar aos mais altos e o escadote ajudou a alcançar os títulos junto ao teto. Em todas as estantes de livros que se prezam, há fotografias com memórias de tempos intactos pela objetiva e a decisão de expor aqueles momentos notifica o dia a dia com mensagens permanentes sobre o passado.

Uma fotografia de Vitória em São Paulo transportou-a para o dia em que comprou na Livraria Cultura, na Avenida Paulista, os primeiros livros que adquiriu de Clarice Lispector. Vou estrear-me em Clarice, disse Vitória à rapariga que a atendeu. Por onde devo começar? Recebeu resposta pronta. Pelo último, A Hora da Estrela e, quando estiver entrosada com a autora, avance para A Paixão segundo G.H. Vou seguir a sua recomendação. Obrigada. Vitória voltava-se agora para a categoria de livros estrangeiros, onde se encontrava Clarice. E Nelson Rodrigues. E, claro, Rubem Fonseca. E tantos outros. Numa linha contígua, surgia equilibrada uma coleção de livros brasileiros, com os incontornáveis Machado de Assis, Graciliano Ramos, Carlos Drumond de Andrade ou Nelson Rodrigues, de novo. Chegou-lhe nesse instante a recordação de, grávida do terceiro filho, se lançar à estrada, em pleno Chiado, a carregar a pilha de livros que encomendara em saldos. Nos portugueses, ali mesmo ao lado na estante, Gonçalo M. Tavares, Mário de Carvalho, Fernando Pessoa, Eça pegavam-se para serem lidos. Sim, Vitória entendia que da disposição dos vários livros chegavam mensagens de incentivo à leitura e da memória a imagem de como cada um deles chegara àquela estante ampla a preencher cada categoria.

Dali havia de se fazer uma biografia de Vitória, como aquelas que ela própria arrumava na prateleira dedicada às biografias de que tanto gostava. A estante que migrava da casa dos pais já não se comparava com a que hoje existia. Mas a raiz é fundamental. Porque a memória fundamental é a daquele dia em que tocaram à porta a entregar a estante encomendada com prateleiras de alto a baixo. Corria o secundário. Vitória tinha-se sentido orgulhosa da sua decisão. Muitos anos depois, já na sua casa e com a sua família constituída, a estante era maior, com mais categorias e marcos simbólicos. Objetos trazidos das viagens. Uma boneca chinesa comprada no topo do Tian Tan Buddha, em Hong Kong, ou os bonecos esticados de pau-preto da bonita Díli. Longe da prateleira da poesia, das crónicas, do teatro e das entrevistas, aqueles objetos simbólicos conservavam uma imagem das viagens ao outro lado do mundo e ao avesso da alma. E, numa pincelada generalizada em toda a estante, o pó foi limpo e a estante parecia outra. Como o ar, lá fora, escudado do consumo exagerado de combustíveis proporcionado pelo isolamento. De repente, tudo estava lavado.

Quando lhe nasceu o primeiro bebé, para além do enxoval típico, Vitória pediu nesse Natal uma catrefada de livros para a estante que o filho veria desde o primeiro dia. Alguns clássicos que ainda não tinha entraram de rompante na lista como condição sine qua non para introduzir um filho na trajetória da vida. Crescer com uma Ilíada e uma Odisseia por perto faz a diferença nas referências que vão construindo e oleando o pensamento. Não tinha dúvidas sobre isso. E, nesse serão, nessa vigília pelos livros, na limpeza profunda à estante, recuperou essa convicção. E deitou-se.

No dia seguinte, seguiam-se as rotinas do teletrabalho, das tarefas domésticas, das aulas virtuais dos filhos, do projeto literário e artístico em que aceitara participar e de outros voluntarismos a que sempre se dedicava. Nos dias a seguir, a mesma coisa. E, nos seguintes, também. Sempre a mesma coisa, mas nunca nenhum dia foi exatamente igual, porque encontrava-se em vigor o tom acima da implacável normalidade. Lembrava-se agora da imagem comovente do Papa Francisco quando falara numa Praça de São Pedro vazia, onde Vitória havia estado pouquíssimos meses antes, ainda pejada de gentes, sons e cheiros. E onde não seria imaginável que o Papa um dia falasse, numa solidão imposta, para um mundo inteiro e novo. O que lhe passaria pela cabeça naquele instante? Para lá das palavras lidas com fulgor. O que demarcaria para ser retido pelos homens, entre as suas expressões na face preocupada? Naquela noite, Vitória adormeceu no tumulto deste pensamento interior. Que um dia daria um livro.

 

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