Lisboa. Hora de almoço de uma segunda-feira. Podia ser mais uma, exatamente igual às outras, se no destino não viesse o aeroporto da capital, rumo à porta das partidas. A mesma que detalhava os minutos locais e que fazia chegar à imaginação a rotina desigual, profundamente desigual, de um fuso horário com 8 horas a mais e a estação do ano inversa. Declaradamente, do outro lado do mundo, na visão eurocêntrica.
Despachada a bagagem, avizinhava-se um caminho de alguma imprevisibilidade, na medida em que comigo seguiam os passageiros que me proporcionaram a melhor experiência a bordo, os meus filhos, de 4 anos (no seu quinto voo) e 15 meses (no seu súbito batismo de voo). O Boeing 777-300ER da Emirates encontrava-se já a receber os passageiros prioritários, como nós. Através dos olhos dos meus filhos, o meu olhar ganhou uma lente nova, progressiva, extensa, perante a qual também o meu voo surgiu inaugural, com o filtro da primeira vez. E enquanto nos acomodávamos nos nossos lugares, caía a noite em Perth, na Austrália. O nosso destino.
Toda a tripulação se excedeu em mimos e atenção desdobrada. Entre os brindes oferecidos aos mais novos, o cuidado com o seu bem-estar, os vários apontamentos fotográficos com uma Polaroid de serviço em observação do nanosegundo, foram muitos os motivos de distração que se juntaram a uma panóplia de filmes, jogos, músicas, conteúdos que o voo disponibilizava para assegurar a ocupação da viagem até à escala, nos Emirados Árabes Unidos, no Dubai. Do Dubai a Perth, num período horário já coincidente com a estreia da noite em Lisboa, os passageiros seguiram a dormir. Menos eu. Vigilante.
No final da tarde de uma Perth entre a primavera e o verão, um Airbus da Emirates, o maior avião do mundo, chegou a terra com um mantra em surdina nos meus ouvidos: «atravessámos o mundo, atravessámos o mundo, atravessámos o mundo». Era a mensagem que vinha evidenciada, como chave mestra, no olhar do meu filho mais velho, que ali tomava consciência de que não estávamos em casa e de que esse outro lugar aonde tínhamos chegado era, efetivamente, muito longínquo. Desafiador dos anteriores limites.
Esperava-nos, para a manhã do primeiro dia em Perth, um passeio junto ao Swan River, pontuando a perspetiva de quem se assoma entre os significativos arranha-céus que a cidade alberga e que na concentração da zona financeira enfatizam um poderoso tecido empresarial e industrial: a Woodside, a Rio Tinto, a BCG, a Deloitte, a Wilson e a KPMG surgem em destaque. Num contraste sofisticado e equilibrado, vamos detetando sinais da cultura aborígene e da colonização britânica que recordam a recente fundação da cidade, no século XVIII. Entre os 2 milhões de habitantes estimados nesta metrópole, uma das mais isoladas de todo o planeta, observamos uma rotina repetida, com horários respeitados, trajetórias programadas, sem desvio, na vida corrida, mas aparentemente desafogada, dos dias úteis.
Entre o fio condutor fluido da rotina executiva de Perth, aparecemos com um invólucro de férias. Com horas tardias, dentro do que é tardio em Perth. Perth Cultural Centre e Perth Art Gallery estiveram nas prioridades dos nossos passeios a pé, com a direção sempre ditada pela Hay Street, que forma o eixo principal de vários dos circuitos pedonais. Northbridge, intercalada, convidava a ficar para comer e decidir entre as várias culinárias internacionais representadas. Na galeria de arte, extraordinária, várias cores, texturas e enquadramentos ditavam os quadros das artes moderna e contemporânea, com palco dado a artistas locais, como Sandra Hill, nascida em 1951, em Perth. Uma permanente influência aborígene segurou-me os olhos, sem permitir respiração. O contraste nítido entre as cores e os tons terra sugeriam a região desértica australiana que se perde de vista. Entre os quadros, as instalações. Uma delas a fazer lembrar a solene Joana Vasconcelos. A encher-nos de orgulho do que é nosso.
De alguns pontos estratégicos, como a Swan Bell Tower ou o State War Memorial, surgia de novo o Swan River, mas com a sua extensão sobre o Oceano Índico a ornamentar uma Perth equilibradamente feliz e harmoniosa. Como aquela que sentimos no Kings Park, tão verde. No dia em que saímos do hotel com o Kings Park no destino, dirigimo-nos à praça de táxis mesmo à porta e pedimos ao primeiro taxista para nos levar a Kings Park. O senhor, muitíssimo educado, olhos nos olhos, disse: «Eu posso leva-la a Kings Park, mas ali em cima, mesmo na esquina, tem uma paragem onde pode apanhar o autocarro gratuito da cidade, que a deixa lá em menos de cinco minutos». De mim, recebeu uma preocupação, entrecortada na surpresa daquela atitude: «Mas, repare, estou com duas crianças tão pequenas. Como faço com o carrinho do bebé?». O taxista, perentório, descansou-me: «Não se preocupe. Os autocarros têm uma rampa que desce automaticamente e o motorista, logo que a vir com o bebé, acionará imediatamente a rampa!». Deixou-me a pensar e disse: «Eu levo-a lá, também em menos de cinco minutos, mas terei de cobrar-lhe 10 dólares…». Segui, claro, para a paragem e, três minutos e meio depois, entrávamos no Kings Park. Ainda a digerir tamanho estádio da civilização traduzida naquela atitude…
Sinalizavam-se, por aqueles dias, os 100 anos do fim da Primeira Grande Guerra e com esse chapéu embrulhavam a relva centenas de papoilas feitas à mão. Muitas senhoras, à margem da mancha encarnada, vendiam diferentes tamanhos de papoilas, num apelo à paz. Comprei uma papoila média e expliquei ao meu filho mais velho o significado daquele gesto. Entre a interpelação de uma das vendedoras, que me perguntou onde havia comprado os meus óculos escuros, segui para o campo de flores e sentei os meus filhos naquele jardim, que com eles ganhou ímpeto de paraíso. Ficou enorme. Incomensurável. Caminhámos para dentro e entrámos no Jardim Botânico e vimos espécies e espécies e espécies, de todas as cores e feitios. Só me lembrava de como teria sido aquele famoso dia em que a brasileira Clarice Lispector deambulava pelo Jardim Botânico do Rio de Janeiro e dessa deambulação fez um pequeno conto, que Tolentino Mendonça recupera num dos seus livros. Senti-me Clarice, no Jardim Botânico de Perth. Estava lá só para ver. E como era largo o verde ali. A erguer-se para o céu.
Num outro dia, numa outra zona da cidade, eminentemente urbana e cosmopolita, tiritávamos entre as lojas das grandes marcas, como a Prada ou a Louis Vuitton. Nada de novo, tudo igual às restantes cidades onde as mesmas lojas existem. Simultaneamente discreto e imponente, chegava aos nossos olhos, entre os estabelecimentos comerciais, o Perth Theatre, um dos ícones culturais locais. Com uma fachada majestosa, mas sóbria. Elegante. Muito elegante a fazer imaginar como se dará o teatro num palco australiano. Com a mesma declamação e verdade, provavelmente, que em qualquer outro palco.
Mas quem vai à Austrália, não regressa ao ponto de origem sem ter visto cangurus. E por isso fez também parte desta viagem, previsivelmente, uma ida ao Jardim Zoológico de Perth. Foi lá que vimos uns quantos cangurus, para nosso espanto muito velhinhos e com uma dose de preguiça que os induzia num salto à velocidade da câmara lenta. Mas o animal que mais impactou a nossa atenção está fora do Jardim Zoológico e corre livre e perspicaz como um pássaro de voo alto. É o quokka, uma espécie apenas existente em Western Australia e, concretamente, num dos locais mais bonitos que o mundo alberga: a Ilha Rottnest, onde não vemos um único veículo (com exceção do das autoridades) e circulamos a pé ou de bicicleta. O cheiro a gasolina ou gasóleo dá ali lugar à azáfama de cheiros que a natureza oferece e que ali, naquele ponto da Austrália a 34 exatos minutos de Perth, de barco, ganha um contingente de energias e reforços para qualquer regresso à urbanidade. Ou ao ponto de partida. Para o recomeço que a verdadeira viagem sempre permite.
Sinto-me muitíssimo feliz por ter tido esta oportunidade, em família. E se pela avaliação de Tolstói «todas as famílias felizes se parecem», talvez não sejamos assim tão originais. Mesmo que nos antípodas. Muito menos a ver os cangurus.
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