Àquela hora da noite, depois de um dia de trabalho cheio e emaranhado e uma viagem de avião antecedida de um significativo atraso e com uma turbulência de inverno posto, nem me estava a dar conta de que os meus pés já se encontravam em Roma. Firmes, mas sem o alinhamento da cabeça, cansada. À porta do hotel que tínhamos marcado para a curta estada, tudo estava estranhamente fechado. A porta. As janelas. A luz. E um papel afixado deixava o único contacto disponível. Perante a chamada imediata que lhes fizemos, uma voz ouvinte assegurou uma solução, não obstante a madrugada iniciada. Espécie de inferno, na Divina Comédia.

Com um carrinho de mão para as bagagens, um chapéu para a chuva miúda que se levantara e uma simpatia regrada, o senhor que se aproximou vinha da rua de baixo e num passo monocórdico. Estávamos em Roma e em Roma, sim, sê romano. Venham comigo, disse-nos. Outro hotel, da mesma cadeia, sem qualquer obrigação de o fazer, acolheu-nos na noite avançada, sem reserva e com tamanha hospitalidade. Na manhã que se impôs imediatamente a seguir, depois de solucionado o berbicacho da confirmação online que não se confirmou e nos predestinou a um outro lugar naquela noite, surgiram as ruas esquinadas que nos levaram em poucos passos à Fontana di Trevi e ao imponente Palazzo Poli. Naquele preciso momento, a minha cabeça já estava em Roma, sem se lembrar onde teria ficado Lisboa. Encontrávamo-nos liberados do purgatório e estava resolvido o segundo estádio da Divina Comédia.

O tempo que entretanto passou sobre o mês em que lá fomos, outubro passado, remete-nos para uma Roma definhada e a braços com a memória das gentes multiplicadas na Piazza Navona ou na Praça de Espanha. Não tivemos qualquer atração, porém, por nenhuma das esplanadas destes lugares mais centrais e turísticos, porque não era a primeira vez em Roma. Ver a cidade eterna pela segunda vez, para mim, tantos anos depois, significou levar agregado aos olhos um acumular de outros lugares, de tudo o que fomos, somos e seremos. Na primeira vez, encontrava-me na faculdade, tinham os meus sonhos todos os sonhos do mundo. Havia participado num concurso internacional sobre o epifenómeno da globalização e, para meu espanto (nem era meu sonho), o primeiro lugar atribuído ao meu trabalho levou-me a Roma. Integrei o grupo de alunos internacionais selecionados e entre todos partilhámos o testemunho sobre o que era, para cada um de nós e a partir do nosso local de origem, a globalização. À saída da Universidade de Roma La Sapienza, comprei uma pulseira esculpida por um designer que vendia no chão e a quem disse que o havia de recomendar em Lisboa. Decorria a semana Santa e a pedrada no charco, de todo o certame, foi integrar uma audiência privada com o Papa João Paulo II. O que está nas memórias intactas que trago.

Naquele primeiro dia, na segunda vez em Roma, aparecia após uma das esquinas o Palazzo Montecitorio, que acolhe atualmente a sede da Câmara dos Deputados e que, naquele instante em que o avistámos, estava em grande frenesim com dezenas de repórteres à entrada, com destaque para uma equipa da Rai Uno, em direto. Num outro ângulo da cidade de onde germinam beleza e elegância surgia o sereno elefante de Bernini com o seu obelisco imponente, na Piazza della Minerva. Escultura sublime, como todas as obras do artista barroco Gian Lorenzo Bernini (1598-1680), conciliador de disciplinas artísticas que ainda se ocupou de espetáculos de pirotecnia. Por estes dias, tive de responder à pergunta do meu filho mais velho: Mãe, qual o teu animal preferido? Em tom seguro, disse-lhe: O elefante, filho. No elefante, vejo sabedoria, tranquilidade, visão, determinação. E a minha cabeça voltou ao elefante de Bernini. Em Roma, ficamos prognosticados com Bernini. É ele que marca o passo do nosso itinerário em Roma, dada a sua omnipresença. Quando chegamos à Praça de São Pedro, no Vaticano, Bernini surge sublime e remete-nos à nossa partícula de tamanho. Naquele primeiro dia desta estada em Roma, ficámo-nos por um lançar de olhos, ao longe, à Basílica de São Pedro. Daquele ponto em que vemos a Praça de São Pedro cá atrás, em contemplação. Chegaram-me à lembrança as orações que fiz quando lá estive pela primeira vez e as respostas que encontrei pelo caminho e pelas quais me sinto eternamente grata. Como se sentirá Roma, presumo, por ser tão esmagadoramente espetacular. Uma dádiva, a terminar aquele dia, chegou-nos na Piazza della Rotonda, onde se impõe uma das estruturas romanas antigas mais preservadas, o Panteão, encomendado pelo imperador Augusto e reconstruído por Adriano. Ali, tornamo-nos intemporais, sem qualquer artefacto tecnológico. Ali, tocamos num pedaço da história que nos fez chegar ao que hoje somos e que, como em tantos outros lugares comuns e incomuns em Roma, permanece admiravelmente vivo. Roma chega-nos perto, ao ouvido, e diz-nos: Em Roma, não sejas romano, sê como és. Eu venho de há tanto tempo, que te conheço na tua verdade, exatamente como és.

No dia seguinte, depois de hospedados no hotel que reserváramos efetivamente e de termos deixado no primeiro que nos acolheu um valente reconhecimento pelo acolhimento voluntário, seguimos o trajeto habitual pela Fontana di Trevi. Um pequeno-almoço mais demorado numa das pastelarias mais frequentadas por residentes permitiu-nos entrar na rotina romana do fim de semana. Nas mesas da esplanada, muitos faziam acompanhar a torrada do jornal, bem levantado para alojar uma leitura demorada. Ao balcão, a pronúncia italiana enchia de energia e ritmo de dança quem de longe observava a vivência local. Prego. Prego. Prego. O frenesim talvez igual ao nosso e que por estarmos de fora nos parece completamente diferente. Por ali, entrámos numa das dezenas de lojas em homenagem a Carlo Collodi, autor do romance do século XIX As Aventuras de Pinóquio, e escolhemos a dedo dois pinóquios para os nossos filhos.

Seguimos para os Museus do Vaticano. Não me recordava da beleza da Galleria delle Carte Geografiche exibindo mapas com todas as regiões de Itália. Mas manteve-se impoluta na minha memória a Capela Sistina, que admirei desta vez com os olhos mais carregados de anos e prismas. Em cada corredor, entreolhava pela multidão lembrando-me que, ali, estava mais perto do cardeal José Tolentino Mendonça. Imaginava-o, aliás, em cada rua de Roma. Mas ali sentia-o ainda mais perto. Cada uma das suas palavras sábias. Cada um dos seus pensamentos refletidos, preparados para deixar uma semente de esperança, sobretudo nestes tempos sombrios em que nos avisa ser o tempo da palavra, não da palavra banal. Não teria, ali em Roma, uma só palavra para imaginar, enquanto percorria a Praça de São Pedro, que ali havia de estar, numa paisagem de fé simultaneamente deserta e atestada, a presença única do Papa Francisco, em contexto COVID-19, proferindo palavras âncora: Fomos surpreendidos por uma tempestade. Mas estamos no mesmo barco e fomos chamados a remar juntos. Não podemos continuar pela estrada por conta própria. Juntos, seguimos para a Praça de Espanha, onde visitámos o Museu Shelley e Keats, dedicado aos poetas românticos John Keats (1795-1821) e Percy Bysshe Shelley (1792-1822), com ênfase na curta vida de Keats, o último dos poetas ingleses românticos e o mais jovem a morrer, em Roma, para onde se mudou esperançado de ali poder enfrentar uma tuberculose fatal. Nesse museu, para além dos aposentos que nos levam a imaginação ao século XIX, encontramos uma das mais completas bibliotecas do romantismo internacional.

Deixámos para o último dia o Fórum Romano e o Coliseu. Eram já muito apagadas as minhas memorações desta zona da cidade. Multidões de pessoas por metro quadrado. Entre os montes Palatino e Capitolino, o Fórum Romano transporta-nos para o lugar em tempos mais central do mundo e que agora combina fragmentos arquitetónicos e descobertas arqueológicas em curso com a vida quotidiana circundante, normal. Num passeio à volta do Coliseu, acabámos por perder-nos em caminhos e atalhos que nos levaram a um mercado onde a rotina residente se fazia sentir à flor da pele, em contraste com a intemporalidade local. À volta, permaneciam imperiais e carregados de tempo os resquícios de Roma e do mundo. Tão antigos e contrastantes como a história da humanidade que resiste nas suas contrariedades por resolver. Naquele par de horas que nos restava para o regresso ao aeroporto, já de bagagem em punho, resguardámo-nos do calor imposto ao outono na Galleria d’Arte Moderna e assistimos à exposição residente Women – body and image between symbolism and revolution. Uma montra clara das incongruências, das disparidades e dos desequilíbrios coligidos na falta de diversidade e que nem o tempo que se deu ao tempo corrigiu.

No voo de regresso a Lisboa, lembrava-me bem onde tinha deixado Roma. E se nesta curtíssima estada entrámos no poema épico de Dante, certamente se deveu a termos conseguido, depois de tudo, conquistado o paraíso.

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