Naquela fatídica sexta-feira, 13 de março de 2020, surgiu no meu telemóvel a mensagem que se impunha: «Assegura que a tua equipa reúne todas as condições para trabalhar a partir de casa. A decisão está tomada. Vamos ficar em teletrabalho». Em linhas rombas, de repente, chegavam atabalhoadas notícias de que o vírus de que se falava tenuemente desde o início do ano propagava-se a cavalgadas e qualquer um dos países estaria exposto. Sem dó de ninguém. De nenhuma fronteira. De nenhum lugar. Nada seria como até ali. Era dantesco o cenário que se avizinhava.

Havia poucos dias, tinha estado com o meu marido e os meus filhos, na altura com 2 e 5 anos, num aglomerado de pessoas, no lançamento do livro Latitudes da Semelhança, da fotógrafa Isabel Nolasco, onde, não fosse uma suposta gripe conhecida no Correntes d’Escritas, também ali teria estado Luís Sepúlveda. Tínhamo-nos cruzado naquele contexto com o mundo numa quinta de poucos metros quadrados. Instalava-se o medo do que poderíamos ter trazido para a própria casa, com menos metros quadrados ainda.

Poucos dias depois, recebo um telefonema da Ana Margarida de Carvalho. Das coisas muito boas que o nosso país tem, os seus escritores, os seus artistas e, concretamente, a Ana Margarida de Carvalho. Desafiava-me, nesse telefonema, a ser parceira com o Entre | Vistas, a plataforma digital de comunicação e divulgação cultural que lancei em 2014, de um projeto de resistência cultural que arrancava exatamente no dia a seguir. «Será um programa para vingarmos a quarentena», disse-me. Para ajudar a acomodar a esperança e a espantar o medo, pensei. «O que achas de leres cada capítulo de cada escritor e publicares, dia após dia, uma versão áudio? E podias também fazer os teasers para anunciar em cada noite o desenvolvimento do dia seguinte. Será, estou segura, uma ótima parceria». Disse-me. Quando um implacável vírus, desconhecido e silencioso, parecia roubar o meu futuro provisoriamente completo, recebo esta chamada. O meu coração ameaçou qualquer impedimento do meu cérebro e sem medir o esforço disse-lhe que sim.

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Impôs-se, a partir dali, o tom absolutamente acima da rígida normalidade. O tom de voz. A voz como a ferramenta de expressão que diz o que se quer dizer através do tom certo e da pausa no lugar certeiro. Há anos que sou chamada a fazer locução das coisas mais diferentes. Provavelmente, no tempo da pandemia, poderão ter ouvido a minha voz noutras chamadas, na área da saúde, por exemplo. Com o Bode Inspiratório é que eu não contava! No arranque de 2020, tinha aliás criado no Entre | Vistas uma nova categoria dedicada à voz. O Tom de Voz. Não imaginaria que viria a ser necessária imediatamente.

Saberia pronunciar o sentido das palavras dos 46 escritores? Os seus silêncios? O seu destino? Faria o melhor, pensei. Entre 21 de março e 5 de maio de 2020, gravei todas as noites, sem exceção, o capítulo anunciado naquele dia no Facebook do Bode, para o divulgar no Entre | Vistas no dia seguinte. Paulatinamente, ficaram alojados no Entre | Vistas os áudios dos 46 capítulos, na categoria Tom de Voz. À noite, às 21h, lançava nas redes sociais do Bode um teaser, anunciando em concorrência com as notícias sempre repetidas do coronavírus o escritor e o artista que poderíamos conhecer no dia seguinte.

A minha quarentena revelou-se pejada de planos não planeados. Todos os dias, dedicava então um tempo às gravações de voz. Sempre no silêncio da noite, depois de deitar as crianças; de ter tido dezenas de calls nas ferramentas digitais que todos passámos a dominar; de ter arrumado a cozinha e planeado outros afazeres quaisquer; de por a roupa a lavar; depois de tantas vezes ter ido ao lixo. E esse ir ao lixo era na altura a saída para a rua, a escapadela do isolamento.

Cada acordar não tinha que ver com o adormecer. Era outro dia e a luz a entrar pela janela puxava para uma dose significativa de energia, à qual não se apresentavam grandes alternativas. Eu não sabia para onde me voltar. Era muito o que tinha para fazer. Mas não perdi o foco, já treinado de há muito para me refugiar na interioridade que não trai. Não terá sido por acaso que no tempo de maior confinamento me tenha chegado às mãos um projeto artístico e literário. A arte consiste num horizonte de esperança, numa imagem de interioridade, lá está, e de verdade. Tantos os autores consagrados que edificaram as suas obras magnas em períodos de recolhimento, ainda que nem sempre voluntário, e nos quais optaram em consciência pelo olhar ao interior e a partir dele.

Marcel Proust, Virginia Woolf, Camille Claudel. Neste tempo novo, perguntava-me por esses dias como chegar efetivamente a esse dentro de portas para fazer a revolução necessária. É que havia um vírus lá fora. Estávamos perdidos. Mas a Ana lembrou-se de nos juntar a todos.

Cada dia continuava carregado de rotinas instaladas com o confinamento: teletrabalho; aulas escolares virtuais; almoço; arrumação da cozinha; lanches; jantar; arrumação da cozinha, outra vez; ir ao lixo. E o Bode. Omnipresente no tempo do primeiro isolamento.

O meu filho mais velho estava a começar a juntar as palavras lidas. E atento que estava sempre às gravações do Bode. «Mãe, já sei bem a diferença entre as maiúsculas e as minúsculas. E também entre as letras de imprensa e as manuscritas. Outro dia li o que escreveste para fazeres as tuas gravações de voz. Tens uma letra tão feia, mãe». E continuou: «Mas vocês, adultos, escrevem pouco à mão, não é»? «Sim, filho, quase não escrevemos à mão. Passamos tempo a mais agarrados aos ecrãs, é neles que escrevemos a maior parte das palavras. Por isso, as nossas letras ficam tão feias, como a da mãe». «Um dia vais ter uma letra bonita, mãe, não te preocupes». «O mais importante é escrevermos bem, filho. Sem erros. Quando escrevemos com erros, significa que pensamos mal». Esta e tantas outras conversas que o Bode desencadeou… Eles, os meus filhos, estavam mais do que atentos ao Bode. Colocavam a voz para me repetir e soletrar: BODE INSPIRATÓRIO.

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Uns dias depois, numa das sagas da fralda a mudar ao mais novo, mais um telefonema inesperado. Era a Ana: «E se entrevistasses alguns autores? Será fundamental dar voz a quem participou». Entrevistar é de facto das coisas de que mais gosto. Aliás, o Entre | Vistas é um projeto desenhado para a pergunta. Para as perguntas que somos. Mas como meteria eu mais coisas na amálgama de coisas que já tinha? O tempo parecia grande para quem não tinha mais do que o espaço da própria casa. Mas o digital aumentou exponencialmente a extensão do que antes fazíamos em presença. «Vamos a isso». Respondi. Mais uma vez, não medi o esforço. Mas não me deixei vencer pelo cansaço.

E depois? O guião, inventariar as perguntas pertinentes, auscultar o outro, o seu pensamento. Uma parcela dos participantes no projeto e que dariam agora o testemunho sobre essa participação em tempo de isolamento, nas respostas às minhas perguntas. Mário de Carvalho, Filipa Leal e Nara Vidal, Licínia Quitério e Afonso Reis Cabral, Ricardo Fonseca Mota, Rui Zink e Jorge Serafim, Afonso Cruz, Carlos Campaniço, Ana Cristina Silva e Gabriela Ruivo Trindade. Eis os entrevistados. Era sempre ao sábado ou ao domingo. No Zoom. Enfiada na cozinha e com pedidos especialíssimos à família para não abrirem a porta e aguentarem o tom de voz.

Impunham-se então as perguntas aos escritores. Este é o tempo para se efetivar uma grande mudança? Mas o que é uma grande mudança? Respondo-lhe com esta pergunta. Estamos perante uma crítica consciente ao obscurantismo em que vivíamos, regozijados, ainda que carregados de conhecimento científico e tecnologias? Vivíamos, em pleno século XXI, cheios de conhecimento mas longe de imaginar o que podíamos ainda desconhecer profundamente. Na qualidade de escritor, observador atento da realidade, considera que este momento é uma importante oportunidade para apurarmos a nossa capacidade de selecionar as melhores fontes, filtrar opiniões para uma melhor interpretação da realidade? Como nunca, o trabalho dos jornalistas é agora relevantíssimo. Como é ser parte de uma obra maior, maior do que nós próprios? Qualquer obra, mesmo que individual, é maior do que nós. E quem pensar o contrário… O medo continua a ser um bom elemento literário? O medo sempre foi um fator de inspiração literária e artística. Estamos perante uma chamada de atenção para as diferenças gritantes entre o homem e a máquina? Não sei se existe alguma diferença entre um e outro. Esta situação em que nos encontramos, que nos votou a uma rotina de paragem, pode gerar as condições para uma disponibilidade maior para o tempo da leitura, da palavra? Se não o fizer, não teremos conseguido aprender rigorosamente nada com isto. Do seu poder de observação, enquanto escritor, entende que, depois disto, uma vez alcançado um novo normal, voltará tudo ao normal? Não tenho dúvidas de que o novo normal será igual, exatamente igual ao antigo normal. Não conheço momento algum na história da humanidade que tenha sido tão original ao ponto de pulverizar a natureza cíclica da evolução humana. Considera que, tendo em conta a situação inédita, nada será como antes? Depende da nossa disponibilidade para não perpetuar erros. A ciência, como a criatividade artística, tem de imaginar o inimaginável? A verdade é muito mais estranha do que a nossa imaginação. Há uma chamada de atenção para o que ficará em défice nesta conjuntura pandémica? Espero que o que fique em défice não afete os abraços ou os afetos. Teríamos saído a perder, manifestamente. Afinal moramos num mundo com pés de barro? Moramos num mundo com todo o corpo em barro. Não me queiram convencer do contrário.

Com a série de entrevistas, que revia à noite, lembrei-me a páginas tantas de Albert Camus, que se referiu à questão que possivelmente será a mais importante do nosso tempo e que “cresceu” com a pandemia: onde é a nossa casa? Qual é o nosso lugar? O nosso papel? O choro do meu filho mais novo interrompia-me tantas vezes o frenesim filosófico. «O mano não quer brincar comigo». «Querido, faz lá uma boa conversa com o teu irmão. Entendam-se. E, se preferires, ajudas-me a fazer o jantar».

Assaltada por estes pensamentos ziguezagueantes, terminava a última gravação para o projeto cultural, no meu tom de voz colocado. E o silêncio que o meu gravador deixou ouvir tinha o som de uma criança a ler alto. Era o meu filho mais velho, que me seguia o treino das palavras ditas em voz alta, fora do pensamento:

«Pois às vezes me falta a quem contar

certo dia passado do princípio ao fim».

E os versos do poema de José Tolentino Mendonça foram, pelo menos por uma vez, lidos por uma voz pequenina e carregada de curiosidade. E esperança. Como no tempo da infância, e também, com o Bode, no da pandemia, em que não podemos imaginar o que nos pode trazer o futuro. Mas podemos desejar que seja bom.

E foi isso, afinal, que o Bode fez, contagiar a esperança, e o sonho, já agora, num período que se queria apenas com 40 dias.

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