É omnipresente. Avistamo-la de praticamente todos os pontos, quando cirandamos pela Medina, a zona antiga da mística Marraquexe. É a Mesquita Koutoubia, uma espécie de avenida principal, para onde tudo converge e de onde tudo parte. Do alto do seu minarete, sai o som inconfundível, ordeiro, venerável, chamando para as cinco orações diárias. Construída no século XII, faz com o seu nome uma ponte simbólica para os escribas, porque terá ali havido em tempos, tempos idos, um mercado com textos religiosos à venda. É a primeira grande marca com a solenidade muçulmana. E uma validação altiva da cor predominante.
A aterragem em Marraquexe é desde logo uma janela aberta para o tom ocre, encarnado rosado, da cidade que fica a uma hora e 15 minutos de Lisboa, de avião. Mas também uma evidência do contraste entre a Medina e a urbanidade à volta. Nada deixa adivinhar, porém, o profundíssimo misticismo da cidade marroquina enquanto nos deslocamos no Aeroporto Marrakech-Menara, moderno, arrumado, amplo. Nesta minha primeira visita a Marraquexe, observo o olhar do motorista que nos leva ao Riad Amina, no coração da parte velha da cidade. Longe da urbanidade. Num ponto labiríntico, aonde os carros não chegam e as motorizadas e bicicletas (sugerindo uma maior antiguidade do que a própria cidade) desfilam numa afronta voraz ao código da estrada. Vários cidadãos locais tiritam pelas ruas, protegidos pelas suas túnicas, cobrindo dos pés à cabeça os corpos maioritariamente escuros, carregando uma história de vida, que queremos interpelar quando olhamos de fora, com a diferença na bagagem. O motorista estaciona no último ponto possível. Alguém vai indicando o caminho até surgir o Riad Amina. Onde ficámos e fomos presenteados com hospitalidade e acolhimento, numa impressão efetiva de quem é recebido numa casa familiar.
Não há chuva que impeça uma imediata deslocação à praça central, Djemaa El Fna, classificada como Património Mundial da Unesco. Todos os nossos sentidos são interrogados neste lugar cimeiro, em Marraquexe. Não é uma praça tradicional, circular ou simétrica. Tudo ali é aparentemente confuso, mexido, agitado. Encantadores de serpentes à espreita. Homens erguendo macacos para uma fotografia a pagar. Especiarias, muitas especiarias. Um marroquino exibe o dispendioso açafrão e apregoa sobre as vantagens de inalar uma outra especiaria embebida em água. Pelo meio, um camaleão faz as delícias na sua previsível capacidade de se transformar. No centro da praça, somos repetidas vezes abordados pelos vendedores marroquinos. Tentam a sorte de uma venda, questionando a nossa nacionalidade. Descobrindo que é de Portugal que somos, soletram solenemente «António Guterres!». E arrancam-nos uma boa gargalhada e o espanto por não se ter ouvido o nome grande do futebol mundial. Do solo, avistamos os vários terraços. E as esplanadas com as cadeiras alinhadas, voltadas para o sol, à boa maneira francófona. Não faltámos ao Café des Épices, de cujo rooftop passámos a praça a pente fino, numa impressão que fica a dever à passagem do tempo uma melhor avaliação. Ali, o tempo desafia-nos. Aquele espaço altera-nos. Diversificamos a nossa cosmovisão.
Dali imergimos nos ilustres Souks, os mercadinhos onde nos perdemos à velocidade da luz. A diversidade de cores introduz a alegria, o ritmo e o timbre que a monocromática paisagem das casas se demite de assegurar. Qualquer bússola, nos Souks, será peça fundamental. Mas, ao mesmo tempo, andar à deriva ali deverá ser experiência obrigatória. Entre as tendas de sapatos e sandálias (lembro-me de apenas ter visto um único par de botas de cano alto), acessórios de moda marroquina, peças decorativas para a casa, candeeiros e mais candeeiros. E candeeiros. Numa tenda específica, vejo um marroquino de idade avançada num trabalho árduo a limar pedaços de madeira com as mãos e os pés. Com a mesma habilidade nas mãos e nos pés. Fiquei atónita seguindo cada passo. No final, introduziu um fio num orifício do objeto de madeira, como quem enfia uma linha numa agulha, e ofereceu-mo olhos nos olhos carimbando aquele gesto com uma manifesta atribuição de sorte. Mesmo racionalizando que possa fazer o mesmo com cada turista que por ali passe, o marroquino foi pródigo em protagonizar aquela oferta como a primeira e única. Noutro ponto de venda, onde comprei uma das portas típicas marroquinas, em formato miniatura, um outro vendedor ofereceu a mão de Fátima que vemos um pouco por todo o lado. E seguimos de corredor em corredor. Quando nos adivinhamos perdidos, estamos numa zona longínqua onde as peles de animal são transformadas em couro e onde os turistas desfilam com pedaços de hortelã colados ao nariz, como forma de mitigar o cheiro intensíssimo que o processo de transformação das peles emana.
Depois dos Souks, uma visita ao soberbo Museu de Marraquexe, enquadrado num antigo palácio do final do século XIX. Restaurado pelo colecionador marroquino Omar Benjelloun e atualmente gerido pela Fundação Omar Benjelloun, o Museu Marraquexe exibe armas, peças de vestuário e acessórios da moda Berber, alguns dos quais ainda hoje utilizados na montanha.
São perto de 20 as portas que pontuam as muralhas da Medina e, por esse meio, continuamos ligados ao exterior. Nos arredores, ganhamos contacto com a abordagem ocidental porque nos deparamos com as cadeias de lojas internacionais, condomínios residenciais e hotéis de luxo. Parámos, num final de tarde, para beber um copo no La Mamounia, provavelmente, um dos hotéis mais bonitos em todo o mundo. Recebe, desde 1923, viajantes de diferentes proveniências e é famoso por ter alojado algumas das figuras mais proeminentes, como Winston Churchill, Franklin Roosevelt ou Catherine Deneuve. Um respeitável piano de cauda e vários músicos num jazz extraordinário oferecem-nos um ambiente absolutamente inesquecível.
Seguimos para o Museu Yves Saint-Laurent para uma viagem a 50 criações do estilista internacional, concebidas entre 1962 e 2002, mas revelando uma evidência magnífica de intemporalidade. A vida, o pensamento criativo, a obra, a visão de Yves Saint-Laurent têm neste espaço uma montra irreverente, numa apologia da moda como fator de afirmação estética e cultural. Logo atrás do museu, encontramos um dos pouquíssimos desafios visuais à cidade vermelha: o Jardim Majorelle, com um lindíssimo azul-cobalto. Yves Saint-Laurent e o seu companheiro, Pierre Bergé, descobriram este jardim na sua primeira visita a Marraquexe, em 1966, e na década de 80 deram-lhe uma nova vida, abrindo-o ao público com algumas centenas de espécies de plantas introduzidas. No regresso à Medina, enfrentamos uma grande azáfama. Decorria nesse fim de semana o WTCR que atribuiu o 6.º lugar a um português, Tiago Monteiro.
Do topo do Riad Amina, contemplei o que dali se avistava da cordilheira do alto Atlas, num contraste entre a neve ao longe e o sol entretanto instalado na quarta cidade do país, atrás de Casablanca, Fez e Tânger. Num profundíssimo minuto de interpelação daquela comunidade tão próxima e tão distante, diferente e coabitante, monocórdica e ensurdecedora, percebi quão claro pode tornar-se o nosso lugar de origem sempre que estamos fora das nossas fronteiras.
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