Fotografias do artista com cortesia de André Tentugal.

 

M úsico, compositor, DJ, produtor. Na década de 1990, em Londres, cidade em que se formou como designer gráfico, fez périplos musicais entre clubes e trabalhou como DJ. No início deste nosso século, na sua pele de DJ, e já a partir do Porto onde hoje reside, reescreveu o contexto do clubbing em Portugal com contributos a partir do seu Club Kitten. Com X-Wife, a banda que fundou e em que lidera diferentes papéis – vocalista, guitarrista, cocompositor e coprodutor –, editou cinco álbuns. A sua multidisciplinaridade ganhou na segunda década dos anos 2000 um alter-ego com a designação White Haus, que lhe valeu a estreia na composição e produção eletrónica, a solo. Com o lançamento da nova música Wolf Manhattan, a apresentar em concertos no Porto, dia 3 de fevereiro de 2023 (Auditório CCOP), e em Lisboa, dia 10 de fevereiro de 2023 (Galeria ZDB), não há tempo a perder para ouvir (melhor) um dos músicos mais irreverentes e versáteis que o país conhece. É o João Vieira.


Para nos situarmos: em que momento da sua vida se impôs o ouvido para a música?

Eu sou o mais novo de quatro irmãos, cresci a ouvir a música que eles ouviam, o meu irmão tinha uma boa coleção de vinil e a minha irmã mais velha casou com o Henrique Oliveira (guitarrista dos Táxi). Aos 8 anos, já assistia a concertos dos Táxi e foi por essa altura que comecei a gravar as minhas primeiras cassetes e a definir o meu gosto musical que passou muito por Bowie, New Wave e punk. Depois comecei a ganhar o gosto por colecionar discos, algo que ainda mantenho nos dias de hoje. A minha primeira relação com a música foi de escutar, descobrir e explorar. Os instrumentos, as bandas e a composição surgiram bastante mais tarde.

E quando, na música, há várias disciplinas em mãos, como é o seu caso… que hierarquia tem a importância de cada uma na sua construção como artista?

No caso da composição, primeiro surgem as melodias, depois os arranjos e pré-produção, e por último, a letra. Todos são importantes, mas dou mais valor à melodia, pois foi sempre o que me moveu primeiro quando comecei a ouvir música. Ouvia muita música em inglês quando era miúdo e nem sempre percebia as letras, por isso a melodia era o que me agarrava primeiro. Embora no caso das músicas cantadas em português fosse a letra, pois compreendia o que estava a ser cantado. António Variações, Chico Buarque, GNR, entre outros, foram artistas e grupos em que as letras se destacavam. Ouvia aquela música de forma um pouco diferente, com outra atenção.

Tanto no design, como no processo criativo de composição de uma canção, trabalhamos em camadas por cima de camadas de onde vamos tirando e adicionando até o resultado desejado, muitas vezes até por tentativa erro ou por mero acidente.

Voltemos a Londres e ao design gráfico. Que influência é que essa formação teve no músico que surgiu?

Acho que está tudo ligado, o design, a moda, as artes performativas. Na maior parte dos casos, não se conseguem dissociar e são esses os fatores que acabam por criar uma identidade de um artista, de um género musical, de uma editora, de um club, de todo um movimento. Sempre fui fascinado pelas capas de discos, eram elas que me atraíam para pegar num álbum, por isso foi sempre algo que quis fazer e que acabei por fazer mais tarde com X-Wife e White Haus e fazendo os flyers para o Club Kitten. Tanto no design, como no processo criativo de composição de uma canção, trabalhamos em camadas por cima de camadas de onde vamos tirando e adicionando até o resultado desejado, muitas vezes até por tentativa erro ou por mero acidente. São duas áreas criativas, em que o processo de construção não difere assim tanto (pelo menos da forma que eu trabalho).

E a sua cidade, o Porto, que influência tem na sua música?

Eu era uma criança nos anos 80 e absorvi muita da música que estava a ser feita cá, desde os Trabalhadores do Comércio aos Táxi, projetos com que me identificava mais na altura, todo o boom da música portuguesa que marcou a década de 80. Nos anos 90, já nos finais da adolescência, comecei a sair à noite e o Porto tinha um certo charme. Os clubs e bares que comecei a frequentar passavam música de acordo com o estado de espírito da cidade. Tenho uma memória de uma cidade um pouco cinzenta, deserta em muitos locais, e acho que a música que se ouvia refletia um pouco aquilo que a cidade nos dava na altura. Esse lado mais melancólico do Porto acabou por influenciar um pouco os X-Wife. Acho que é inevitável, a cidade onde vives e onde cresceste acaba sempre por te influenciar mesmo que não te apercebas disso.

Olhemos para os projetos ainda no ativo X-Wife e DJ Kitten. Que peso têm no seu percurso como músico?

Muitíssimo, os X-Wife foram a minha primeira banda a sério, cresci muito como músico, compositor e produtor, ganhei muita experiência de estrada, de palcos, foi e está a ser uma experiência de vida que me fez crescer como músico e compositor. Como DJ Kitten, surgiu quase ao mesmo tempo que os X-Wife e toda a sonoridade dos meus sets acabaram por, inevitavelmente, influenciar aquilo que fazia na banda. A procura constante de novos sons, de novas bandas e de estar a par do que se estava a passar noutras cidades acabaram por ser fulcrais na definição do som daquilo que queríamos fazer na altura. Dez anos mais tarde, quando comecei a produzir sozinho em White Haus, libertei-me das guitarras e acabei por explorar mais a eletrónica e a secção rítmica de caixas de ritmos e linhas de baixo. Explorei também uma outra forma de cantar, algo mais aproximado da música que andava a passar nos meus sets na altura. Por isso, sim, ambos os projetos estão sempre presentes até hoje e influenciam aquilo que eu faço.

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Acaba agora de surgir Wolf Manhattan: é uma música que também é uma personagem (ou uma personagem que também é uma música)?

Wolf Manhattan é um alter-ego. Uma forma de me libertar e dissociar dos outros projetos e começar de novo. Ter uma realidade paralela, algo que posso viver com uma outra pele como se de um personagem se tratasse. Isso é algo que me agrada, dissociar o palco da minha vida real. Gosto de vestir essa pele. Criei um personagem que batesse certo com a música e todo o universo que o representa. As canções ganharam uma nova vida assim que o criei.

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A sua versatilidade e criatividade levam a que tenhamos também acesso a um livro com a história dessa personagem. Esta multidisciplinaridade aproxima, pelas diferentes experiências proporcionadas, a marca João Vieira dos seus públicos?

Não o vejo como uma marca. Vejo-me como uma pessoa criativa que gosta de abraçar projetos de raiz, criar algo onde posso expor as minhas várias influências. Uso a música como ponto de partida, mas depois exploro toda a estética que está associada à sua sonoridade. Gosto desses desafios, de criar identidades, de fazer algo de diferente e explorar outras sonoridades.

Aos seus olhos (e ouvidos), neste mundo desafiante, em que é que a música pode continuar a fazer toda a diferença enquanto linguagem universal?

A música tem um poder incrível de juntar pessoas. Acho que é esse o seu maior poder, um grupo de pessoas que está ali com um propósito a assistir a um concerto, a partilhar um momento na pista, a cantar um refrão, seja num momento de nostalgia ou de êxtase, de felicidade ou de tristeza. A música pode ser de intervenção, de te informar sobre outras realidades que desconheces, de te transportar para outras culturas e lugares, de te alertar, de te libertar, de autodescoberta. São inúmeras as razões que podem fazer toda a diferença na vida de uma pessoa e é algo que está sempre presente nas nossas vidas.

Olhar para estes 20 anos de carreira… que balanço lhe permite fazer?

Acho que tenho feito um trabalho consistente, acho que não me acomodei e arrisquei bastante. Tive muitas experiências em palco, em estúdio e fora deles, conheci pessoas incríveis no percurso, viajei muito, tive momentos especiais, algumas desilusões, aprendi e amadureci, foram vinte anos cheios e não mudava nada. Sobretudo fiz aquilo que sempre quis, nem sempre foi fácil, mas foi o caminho que escolhi.

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