Em Lisboa, corria o silêncio da madrugada e mais um início de setembro. No aeroporto, o frenesim de chegar e partir era ainda contido. Esperava-nos um avião rumo a São Jorge, com escala em Ponta Delgada. Entre São Miguel e São Jorge, uma rota com a duração de 50 minutos permitiu num dia de céu limpo entrever as várias ilhas do triângulo, assim conhecido, onde estivemos nos 9 dias seguintes; e a Ilha Terceira, onde tínhamos estado no ano anterior. Os Açores estão no nosso mapa de viagem e são, para já, uma prioridade, até termos chegado à meta ambicionada das 9 ilhas que formam o arquipélago vulcânico, mágico, misterioso.

Uma viagem de carro por estradas íngremes, estreitas e muitas em terra batida, pelo miolo da ilha, levou-nos, já no carro em São Jorge, guiados num GPS pouco fiável ali, à Fajã do Ouvidor, onde tivemos o nosso primeiro almoço. Ali onde uma janela sobre o oceano intermediava o nosso olhar e a vista intensa, profunda, como em quase todos os locais onde parámos para comer. Ao anoitecer, familiarizámo-nos com o lugar que escolhemos para os três dias, um bungalow no interior da vegetação, a meio caminho entre Urzelina e Velas, uma das maiores localidades de São Jorge, concorrente da Calheta. Entre as vozes locais, ouvimos argumentos que logo nos revelaram a principal diferença: «Velas é mais urbana, movimentada, dinâmica; a Calheta, mais rural e tranquila, com um conjunto de piscinas naturais, a Igreja do Divino Espírito Santo e lojas de sapatos feitos à mão». Detalhes que os nossos olhos puderam validar, quer nas Velas, quer na Calheta, que apanhámos por aqueles dias ornamentada com um ambiente de celebração militar. No bungalow, o nosso sítio de repouso, a vista sobre a ilha do Pico, numa proximidade desconcertante; o silêncio noturno alternado pelo “vozear” do canto inigualável, evocativo, enigmático dos cagarros (com o nome científico de calonectris borealis), porventura a ave mais conhecida em todo o arquipélago; e a presença desempoeirada no coração da natureza concorriam para um lugar firme na nossa memória.

Num novo dia, um passeio pela costa sul permitiu dar à viagem de carro uma organização sequencial por mais uma mão cheia de terras imperdíveis em São Jorge: Ribeira Seca, São Tomé, Santo Antão, Topo e… o Ilhéu do Topo. À conversa com um senhor da terra, guardámos no bolso as histórias que se repetem sobre as vacas que vão a nadar do Topo ao ilhéu e vice-versa. Na verdade, e previsivelmente, não avistámos qualquer vaca a nadar, mas na imaginação mais profícua das crianças havemos de lá voltar para assistir. Ainda no Topo, foi rapidamente percetível qual o restaurante com mais saída, pejado de gente de dentro e de fora: O Caseiro. Fiquei com os olhos demorados na sua proprietária, a Sara, e no tom naturalmente acolhedor e cordial com que nos recebeu e falou da terra. Naquele lugar concreto de São Jorge, ficámos a saber, não se tinham feito sentir as dezenas de sismos que assolaram a ilha de forma tão intensa em 2022 e com um pico em março. «E ainda bem, já que para angústias já bastou a pandemia», ouvimos. Falou-nos daquele lugar com esperança e orgulho, levando-nos para um território de proximidade e pertença.

Num novo dia, mapeámos alguns dos pontos turísticos referenciados ainda em falta no nosso cardápio, como a fábrica de queijos Uniqueijo, União de Cooperativas Agrícolas de Laticínios de São Jorge, em que testemunhámos a prática artesanal de fabrico de queijos mantida desde o século XV, remontando ao início do povoamento da ilha. Seguimos para um dos pontos, possivelmente, mais emblemáticos de São Jorge pela sua desmesurada centralidade: a Ponta dos Rosais, de onde na Vigia das Baleias avistamos naquele que é o ponto mais ocidental da ilha a Graciosa, a Terceira, o Pico e o Faial. E ali na ponta da ponta, vemos também o que resta do Farol dos Rosais, que entre 1964 e 1980, entre crises sísmicas e fortes temporais, ficou desativado durante largos períodos e é hoje um edifício devoluto, com cintas de segurança e mensagens de perigo. Pelo meio, um almoço nos Biscoitos, no restaurante Sabores Sopranos, escancarou mais uma janela sobre o oceano, a ligar na imaginação esse sítio onde estamos àquele onde não estamos e cuja distância a insularidade aumenta. No mesmo dia, subimos numa tarde de neblina crescente em direção ao Pico da Esperança, a montanha que sinaliza hoje um ponto de homenagem às vítimas do acidente aéreo que em 1999 deixou de luto toda a população de São Jorge. Ali, o sentimento que ainda se sente é absolutamente arrepiante. Só a beleza estonteante das fajãs nos devolve de novo à tranquilidade açoriana.

No dia a seguir, uma hora inteira de barco levou-nos à ilha do Pico e um novo carro apanhado em São Roque posicionou-nos na zona de São João, onde fizemos o nosso novo check-in, na Rota Faina Baleeira. Sem perdas de tempo, seguimos para a charmosíssima Vila das Lajes do Pico, para um almoço fugidio no Aromas & Sabores e, na mesma rua, uma visita à livraria Companhia das Ilhas, designação da editora que a batizou, nascida em maio de 2011 e que conta hoje com mais de 240 títulos publicados, abrangendo autores regionais, nacionais e estrangeiros. Esta é a única livraria digna desse nome que podemos conhecer nas ilhas que perfazem o chamado triângulo açoriano (São Jorge, Pico e Faial). Ali, pudemos matar saudades dos livros, folhear páginas entre estantes do chão ao teto num espaço aberto corajosamente em cima da pandemia e que elevou o seu gerente, Carlos Alberto Machado, por tão nobre iniciativa. Numa geografia com défice de livrarias, a Companhia das Ilhas contribui de forma incontestada para a promoção da leitura entre os públicos dos Açores e aqueles que, como nós, chegam para visitar e repousar nos livros encontrados. A ilha do Pico é, também, inevitavelmente, sinónimo de um enorme conhecimento disperso entre o património de saberes sobre baleias e cachalotes. Visita obrigatória faz-se ao Museu dos Baleeiros, na Vila das Lajes do Pico, que agrega um legado de histórias, botes e utensílios deixados na década de 1980, com o fim da caça à baleia, ditado por fatores económicos e ambientais.

Num dia novo, aclamado pela neblina, o vento e a chuva miúda, dirigimo-nos para a Madalena, a principal vila do Pico, para um almoço de degustação no famigerado Cella Bar, edifício premiado e com uma posição estratégica sobre o mar. Na volta da tarde, percorremos ao longo da Rota do Vinho e da sua paisagem que é Património da Humanidade várias localidades tiradas à primeira impressão de um filme pitoresco: Cachorro, que nos atrai desde logo no ponto exato em que dispõe de uma rocha deixada por uma erupção vulcânica com a forma de um cão; Santo António, onde encontrámos uma conhecida loja de artesanato de basalto; ou Lajido de Santa Luzia, onde visitámos a Casa dos Vulcões numa experiência espetacular de aprendizagem sobre a origem do arquipélago, os diferentes vulcões das diversas ilhas e a condição sísmica incontornável em diferentes intensidades das 9 ilhas. Na Casa dos Vulcões, percebemos que os vestígios de sismos e vulcões não ficaram apenas repercutidos na paisagem que se denuncia, mas na própria identidade açoriana, na sua visão coletiva que Nemésio apelidou de “açorianidade”. Na Casa dos Vulcões, insisto, pudemos experienciar a simulação de dois dos sismos mais marcantes e avassaladores que testaram a capacidade de sobrevivência dos açorianos: o sismo que assolou Angra do Heroísmo (Terceira) em 1980 e a Horta (Faial) em 1998. Subimos a uma plataforma com uns óculos de realidade aumentada e, de mãos dadas, deixámo-nos levar pelo tremer constrangedor, ainda que simulado, do chão em que tínhamos os pés. Terrível. Verdadeiramente assustador e vertiginoso. Não queremos imaginar como seria (pior, muito pior) na realidade.

A ilha do Pico, não esqueçamos, com apenas 270 mil anos, é a mais jovem do arquipélago. Aquela em que os terrenos, a paisagem, os costumes estão mais perto do estádio de desenvolvimento inicial. É também nesta ilha que encontramos o ponto mais alto de Portugal: a Montanha do Pico, com 2351 metros de altitude. Curiosamente, não vimos o cume da montanha do Pico, que deixáramos na memória da varanda do bungalow, em São Jorge. Ao explorarmos de ponta a ponta o interior da ilha, perdemos a vista nas diferentes lagoas, ainda que numa guerra aberta com a neblina que ora ia, ora vinha, tornando periclitantes todas as previsões feitas ao tempo. Foi ponto alto a proximidade à Lagoa do Capitão. Para lá chegar, várias foram as vacas que se imiscuíram na estrada com os carros que, como o nosso, passavam intimidados. Mas cada um seguia, afinal, o seu caminho. E ainda bem. No Pico, é também programa obrigatório atravessar a Paisagem da Cultura da Vinha da Ilha do Pico e visitar a Azores Wine Company, que fizemos para brindar o privilégio de estar ali.

Em mais uma viagem de barco, rumámos do Pico ao Faial. Um senhor português, emigrado desde há anos na Califórnia e naquele momento de visita ao irmão, na Horta, pautou toda a viagem com apontamentos sobre os Açores em geral e aquelas três ilhas em particular. Os 30 minutos da viagem oceânica, que naquele dia se vislumbravam ameaçados pelas condições adversas do vento e da água, foram de repente preenchidos com uma simpática conversa e a curiosidade sobre o sentido daquele regresso a casa.

O primeiro almoço decorreu num espaço obrigatório, na Horta: o Peter Café Sport. Ali, para além das várias nacionalidades que presenciamos, encontramos estampados nas paredes e no teto testemunhos, artefactos, fotos, assinaturas e cumprimentos dos velejadores, muitos, muitos, de todo o mundo, que por ali passaram. Num passeio de carro pela costa, a partir da Horta, fomos mapeando vários lugares, como Feteira, Castelo Branco ou Capelo, até chegarmos ao Vulcão dos Capelinhos, que nos introduz numa paisagem vulcânica imensa, impressionante, exuberante, numa marca indelével da condição das ilhas açorianas, e daquela em concreto. De regresso, no final daquele primeiro dia no Faial, subimos ao Monte da Guia para avistar a Caldeira do Inferno.

Num novo dia, e beneficiando da companhia de uma amiga instalada na ilha, seguimos estrada fora na tentativa sem sucesso de ver a Caldeira, que é ponto imperdível. O céu coberto de neblina e a chuva a intensificar-se com a altitude a ganhar corpo, não permitiram que víssemos esta beleza natural tatuada em todos os guias turísticos. Seguimos em direção aos Cedros, ao Jardim Botânico, nos Flamengos, às ruínas da Igreja da Ribeirinha, ao Azul Café, à Praia do Almoxarife e à Ponta do Varadouro.

De regresso à Horta, para um almoço corrido, uma visita à Casa Manuel de Arriaga permitiu ir atrás na história do nosso país, suas vicissitudes históricas, impactos sociais e económicos. Nesta cidade, são pontos obrigatórios, ainda, o Mercado Municipal da Horta, o edifício da Sociedade Amor da Pátria, a Igreja Matriz de São Salvador ou as Igrejas do Carmo e de São Francisco. Com o Pico no horizonte, temos lugar obrigatório também na Marina da Horta, a mais importante dos Açores e uma das mais relevantes em todo o mundo, posicionando-se como importante ponto de encontro de regatas de referência a nível internacional. No último jantar, na Horta, em Porto Pim, no restaurante Genuíno, pudemos validar ainda melhor o espírito marinheiro desta ilha à conversa com o seu proprietário, Genuíno Madruga, açoriano que cumpriu por duas vezes a volta ao mundo a bordo de um veleiro, aquilo a que chama a concretização de um sonho. Lugares comuns em todo o mundo, desde logo recônditos, como Timor-Leste, serviram de pretexto à partilha de histórias e de memórias de aventureiros num restaurante em que nos sentimos passageiros à vela.

Nos momentos finais da viagem, veio-nos à memória uma senhora com quem num dos dias estivemos nos Cedros, no topo da ilha: «Caminham amanhã e não vão ver a Caldeira?». Esse «caminham», que é ir embora, ao qual se referiu a Fátima, açoriana guerreira na sua vida de provações, colocou-nos a inevitabilidade de voltar ao Faial. Na última manhã, antes da chegada ao aeroporto, voltámos a tentar sem sucesso ver a Caldeira. E foi nessa impossibilidade evidente que rumámos ao Monte Carneiro, a partir do qual se (re)vê de cima, inteira, a Horta. Esse lugar de passagem. Esse centro do mundo em que nos (re)descobrimos.

 

 

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