Não causará estranheza a ninguém que a escritora brasileira Clarice Lispector (1920-1977) seja ponto de partida para um argumento dramatúrgico. Esteve por estes dias no Teatro Aberto a peça Eu sou Clarice, com texto, encenação e cenário de Rita Calçada Bastos. E, claro, não me causou surpresa. O que é sempre surpreendente, para mim, em Clarice, é a sua capacidade de se manter absolutamente atual.

Clarice é o centro do argumento desta peça em que é retratada a condição humana, o que, por si só, permite entender – e mais uma vez por se manter tão atual – a obra clariciana como importante espólio de (re)interpretação da complexidade do humano.

Em palco, e depois de longo tempo num baloiço suspenso no ar, assistimos a vários diálogos entrecortados entre vozes interiores, vozes de personagens, vozes imaginárias, vozes do humano. Protagonizadas pela atriz Carla Maciel durante praticamente todo o tempo, e a própria Rita Calçada Bastos, numa entrada cirúrgica em palco.

A figura da mulher e os papéis tão inúmeros, diversos e multiplicados que pode assumir num único dia surgem no centro da história. Lemos nas palavras de Rita Calçada Bastos que a peça está focada «na mulher e na liberdade de se ser tudo, no mesmo dia». Carla Maciel está divina neste papel complexo de fazer, a partir de Clarice, lá está, a complexidade de se ser, mais do que mulher… humano.

O último livro publicado por Clarice, A hora da estrela, e a sua personagem principal, Macabea, surge-nos de rompante neste palco com a extraordinária interpretação verbal e corporal de Carla Maciel. Ali, conseguimos vislumbrar aquela capacidade de Clarice de entender a vida pela lupa pueril e (aparentemente) pouco importante dos marginalizados, dos ovos e das galinhas, do cão e da vizinha, da empregada doméstica e da barata.

E é pela mão da escrita de Clarice, entrecruzada com uma prestação teatral que ficamos a digerir, que entramos na humanidade como ela é: complexa, desconcertante, avassaladora. Inenarrável, mesmo que posta numa narrativa em cima do palco.

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