Câmera Lenta. É o livro com o qual Marília Garcia, poeta, venceu o Prémio Oceanos 2018. Editado em Portugal, na coleção de poesia da Tinta-da-China, com coordenação de Pedro Mexia. Na exímia sinopse do coordenador, sabemos que havemos de conviver, aberto o livro, com «mecanismos interrogativos» e «manifestações de espanto sofisticado». Só isto a mim já me chagaria. Na conversa que fazem connosco, os poemas de Marília Garcia, e insisto na descrição notável de Pedro Mexia, «contam coisas, descrevem coisas, desmontam coisas (máquinas, viagens, conversas, enganos geográficos, festivais de poesia), como se toda a narração fosse uma desconstrução».

Cheguei ao Câmera Lenta através de um anúncio para mais um Encontro de Leituras, ao qual assisti. A iniciativa dos jornais Público e Folha de S. Paulo, que desta vez teve a habitual moderação de Isabel Coutinho e, na ausência de Úrsula Passos, de Francesca Angiolillo (repórter e também poeta premiada), proporcionou-nos a presença da autora e, com ela, uma reflexão na primeira pessoa sobre o Câmera Lenta. Mas também, e isso acaba por ser o essencial, uma oportunidade para desmontar, desconstruir, desformatar a poesia e as imagens que tantas vezes elaboramos dela e a partir dela.

Os poemas de Marília Garcia são autênticas histórias. Damos por nós a ouvir, precisamente, uma história que nos é contada ao ouvido, ainda que pelos olhos que depositamos nas palavras que lemos. Pedro Mexia refere: «E usam truques, loops, mudanças de velocidade, deslocamentos linguísticos, materiais diversos». Estamos perante poemas que aceleram e desaceleram, param e avançam, dialogam, interpelam, voam e fazem voar.

No Encontro de Leituras, Marília Garcia falou-nos que «com o poema pronto, não se vê o processo da escrita» e daí seguiu para a materialidade do processo sobre a qual tem vindo a ganhar maior consciência com a leitura em voz alta dos seus poemas. Na leitura perante um público.

Questionada por uma leitora presente na sessão, Marília Garcia refere que na sua poesia «existe uma tentativa de parar e olhar para as coisas quotidianas, nomeá-las, fazê-las existir de outra maneira, saídas da espuma do tempo». «O momento em que você nomeia, você transforma».

«Porque precisa tanto da imagem?», interpelou outro leitor. «A imagem ajuda-me a dizer as coisas», avançou Marília Garcia. E a verdade é que no livro podemos ler versos ilustrativos da cumplicidade com a imagem: «a fotografia divide o futuro/ e passado – seria possível ver o que/ está no meio?».

Numa outra pergunta sobre a ideia de movimento sugerida no Câmera Lenta, falou-se do deslocamento dos poemas, como «experimentos conceptuais e vanguardistas de cópia e colagem». E no livro, de facto, lemos numa passagem: «uma hélice serve para deslocar/ mas uma hélice pode paralisar». E, numa outra passagem: «mas nem sempre/a gente pode sair do lugar». Acontece que no movimento de Câmera Lenta, surge implicitamente sugerida uma imagem captada pela câmara num diálogo com o cinema, com o audiovisual, com o claro e o escuro.

Marília Garcia diz, no seu livro: «preciso de uma língua/ que defina isso». No fio condutor, é sempre de poesia e do seu processo que se fala, para interrogar: «afinal/ do que falamos quando falamos de poesia?». As respostas não vêm todas e não vêm logo: «dias dias dias,/ um depois do outro e você tem sempre que/ recomeçar». Porque os seus ouvidos mantêm-se observadores: «preciso abrir/ a escuta para ouvir».

Nascida em 1979, no Rio de Janeiro, a poeta Marília Garcia tem vindo ao longo dos anos a publicar diferentes títulos, como 20 poemas para o seu walkman (2007), Engano geográfico (2012), Um teste de resistores (2014), Paris não tem centro (2016), Câmera lenta (Companhia das Letras, 2017) e Parque das ruínas (Luna Parque, 2018). Em Portugal, organizou com Valeska de Aguirre a antologia A poesia andando: treze poetas no Brasil (Cotovia, 2008).

No tempo em que se exige uma resposta rápida, Marília Gracia (e, para fechar, voltando a Pedro Mexia), leia-se: «Ainda se assombra, ainda se pergunta. E diz‑nos como isso se faz». Senão vejamos.

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