Neste livro, assistimos à troca de cartas de dois «jovens escritores unidos pelo mistério da criação». Fernando Sabino (1923-2004), escritor, jornalista e editor brasileiro. E Clarice Lispector (1920-1977), incontornável escritora brasileira. Com Clarice ausente do Brasil na sua trajetória a acompanhar em diferentes países seu marido, Maury Gurgel Valente, diplomata, restavam as cartas para as conversas infindáveis com Fernando Sabino, grande amigo e mentor na apreciação dos primeiros trabalhos literários.
Nas Cartas perto do coração, que pedi importado do Brasil através da incrível Livraria da Travessa, vamos assistindo à troca de impressões sobre os grandes nomes que então preenchiam o status quo do meio literário apreciado no Brasil: Guimarães Rosa, Érico Veríssimo, Machado de Assis, Simone de Beauvoir, Sartre, Nelson Rodrigues.
Nos desabafos entre estados de alma, Fernando Sabino diz a Clarice: «Tem de ser equilibrista até ao final». Mas com ela também partilha palavras de um eterno encantamento: «nossa vida inteira desde o nascimento até a morte, antes do nascimento e depois da morte é um milagre». E mais: «Nascer de novo cada dia e dizer: começo aqui». E com vociferações sobre a fé: «Não temos a humildade da oração, nossa oração é muito complicada, logo vira discurso». E espaço para o sofrimento: «A gente sofre muito: o que é preciso é sofrer bem, com discernimento, com classe, com serenidade de quem já é iniciado no sofrimento».
Já em Clarice vemos desfilarem desculpas sobre períodos de uma maior ausência: «Fernando, deixei de responder logo à sua carta porque exatamente estava em período agudo de precisar receber e não de escrever». «A solidão de que sempre precisei é ao mesmo tempo inteiramente insuportável». Prossegue Clarice. Numa curiosa e sintomática descrição sobre uma ida a Paris, Clarice diz: «Tive um verdadeiro cansaço em Paris de gente inteligente. Não se pode ir a um teatro sem precisar dizer se gostou ou não, e porque sim e porque não».
Sobre a escrita, claro, os pensamentos trocados nas cartas entre Sabino e Clarice são exaustivos. Clarice refere, por exemplo, que «às vezes a palavra que falta para completar um pensamento pode levar meia vida para aparecer». E Sabino diz-lhe, um dia, numa das missivas: «Você está escrevendo como ninguém – você está dizendo o que ninguém ousou dizer». Mas nem sempre Clarice tinha essa consciência. E por isso arrancava ao amigo o tom certo do encorajamento para continuar: «Você vai saber o que dizer quando fizer uma confissão que salve tudo». Acontece que toda a obra de Clarice veio a ser uma confissão salvífica.
O que torna este livro absolutamente fascinante é a possibilidade que nos abre de conhecer Clarice na sua forma de pensar e estar, na sua voz de Clarice, não da autora que lemos nos livros publicados. Nas cartas, Clarice é Clarice.
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