A lentejano, nascido em Évora, em 1980. Residente em Lisboa. Pela sua mão, chegamos a jovens poetas, como Rita Natálio ou Sónia Baptista, e a nomes premiados dentro e fora de portas, como Helder Moura Pereira e Anne Carson (apontada como possível Nobel, editada em Portugal apenas pela Não), respetivamente. E encontramos as obras menos usuais de Patti Smith ou Paul Auster, para uma descoberta com mais espessura, por assim dizer, dos autores. Chego ao João Concha quando quis conhecer melhor a não (edições), seu projeto editorial independente que publicou Sair de Cena, de Inês Francisco Jacob, poeta já aqui entrevistada. Desde 2013, ano da fundação, a não (edições) tem vindo a avolumar coleções, títulos, autores, ilustradores, tradutores, num percurso de consolidação da escrita e das artes visuais, nas quais João Concha permanece em casa. Antes de fundar a não (edições), editou com Maria Quintans e Ana Lacerda a INÚTIL Revista, publicação de escrita e imagem. Autor, editor e ilustrador, com licenciatura em Arquitetura (FAUL) e formação em Desenho / Artes Visuais e Ilustração, é multidisciplinar. Vemos desde 2007 vários dos seus trabalhos em exposições, permitindo-nos conhecer melhor o seu pensamento, traduzido em desenhos, colagens e manipulação de objetos. Assim como quando lemos os autores que publica, numa dança levada com pinças com a palavra. Apetece perguntar-lhe um pouco sobre tudo e ver onde se fixam os seus olhos ávidos de um pensar e de um fazer. É um fazedor da leitura (dir-se-á assim?) e do desenho. E saber onde está a fronteira ou até que ponto isso afinal interessa é o que vamos ver.
Ocorre-me para a primeira pergunta: como é que um arquiteto, com formação em ilustração, olha para a escrita? Por algum momento, como um desenho?
A formação académica corresponde a uma pequena parte de todas as experiências que nos informam e deformam, não é? No meu caso, seguir Arquitectura tinha que ver com a apetência pela imaginação e pela construção de um universo, com a vontade de integração de ‘partes’ numa ideia de ‘todo’ que se vai desenhando. E parece-me que entre um livro e um possível espaço a habitar há algo de comum: a construção ou a representação de uma porção de realidade, sendo que isso releva um determinado olhar sobre a mesma. Vejo a escrita como processo e as palavras como matéria, tal como um conjunto de ‘materiais’ (regras, ideias, experiências, símbolos e também matérias ainda mais concretas) são essenciais à existência de um espaço arquitectónico, que precisará sempre do seu habitante para lhe dar um significado. Não quero desenvolver muito esta comparação, que tem os seus aspectos abusivos ou até impossíveis de sustentar, mas a ideia de dar forma ou de reconhecer a forma é importante em ambos os campos e em ambas as experiências: a de quem escreve ou lê e a de quem desenha um espaço ou o habita. E essa presença que lê e ocupa — esse ser que faz o livro através da leitura, para além do(a) autor(a) — é outra das condições em comum. Não posso olhar para a escrita apenas como desenho, pois ainda que ela possa ser também um desenho (metafórica ou literalmente), é uma forma de reconstituição ou transformação da experiência muito distinta do desenho. Por outro lado, os desenhos também podem oferecer ou não uma escrita, mas são sempre uma forma de inscrição, no tempo, no espaço, na matéria (mesmo que digitais ou virtuais). E depois há ainda esses textos/imagens que se confundem e nos fazem questionar ‘o que é o quê’, e que tanto me interessam: o texto-visual, se quisermos, que apela, como escreveu Ana Hatherly, à “capacidade de desenvolver um novo modo de ler os textos, as imagens e tudo o que historicamente se nos oferece como leitura” (A Casa das Musas. Lisboa: Estampa, 1995).
Como chegam os livros à sua vida (falo dos livros enquanto relação viva com a leitura)?
Esse é um dos objectos preferidos desde a infância — o livro — e uma das actividades a que me entregava quando assim aprendi — a leitura. Filho único e introvertido, não podia estar mais disposto a essa companhia da leitura e, desde cedo, à tentação de espreitar alguns livros dos meus pais que não eram propriamente para mim, se é que existem livros para uns e não para outros ou em função de coisas como a idade (tenho dúvidas sobre isso). Gostava de ler textos que me intrigassem, por vezes os mesmos várias vezes e ainda que não entendesse algumas palavras. Acho que começou aí o interesse pela leitura não apenas como companhia mas também enquanto desafio. Fascinava-me a linguagem em si, mais do que uma eventual história que estivesse ali a ser contada, que tanto podia tornar algo possível, claro, estranho, incompreensível, às vezes tudo isso na mesma página. A par da colecção d’Os Cinco ou de livros de contos lia o que havia em casa e comecei a pedir outras coisas também. Depois comecei a reparar nos muitos livros de ensaio (bastante políticos, inclusive) que eram do meu pai e que eu não percebia. Aí havia essa estranheza da linguagem, a de não ouvir os adultos falarem assim, como se ‘falava’ naqueles livros, o que me fez querer ler cada vez mais e ler outras coisas. É curioso, mas durante muitos anos não me agradavam os livros com texto e imagem na mesma proporção. Em criança e adolescente eu queria livros para ler e livros para ver, sem essa sobreposição entre palavra e imagem — por exemplo os livros de banda desenhada não me interessavam. Não queria que os livros me mostrassem aquilo que lia. Mais tarde fui percebendo que havia lugar para esse diálogo. A dada altura passei a ler muita ficção, depois sobretudo poesia. Lembro-me de ter lido pela primeira vez a Fiama [Fiama Hasse Pais Brandão] e pensado: “o que é isto?”. É uma autora que ficou para sempre comigo. Anos depois fui descobrindo que também o objecto ou suporte livro me interessava, pelas suas possibilidades materiais que sendo limitadas (há condicionantes, claro) podem tornar-se, ao mesmo tempo, infinitas.
A fundação da não (edições): o que o moveu para a criação deste projeto editorial independente?
Esse é um grande salto temporal […]. Ainda antes da não (edições), tive algumas experiências ligadas à edição de livros e outro tipo de publicações, desde a paginação à revisão, passando também pela ilustração. Em relação à edição propriamente dita, houve a INÚTIL revista, projecto de escrita e imagem que editei com a Ana Lacerda e a Maria Quintans, em números temáticos e sem uma periodicidade muito regular. Foi, na altura, um laboratório em que tentámos experimentar bastante na relação entre texto — sobretudo poesia — e imagem — ilustração e fotografia —, normalmente materiais inéditos, estimulando para essa mesma experimentação quem participava. A não (edições) surgiu mais tarde… Comecei a pensar na Não em 2012, ao ler uma série de jovens autores que estavam a publicar poemas em revistas ou que já tinham um primeiro livro. Conhecia alguns e outros não conhecia de todo (apenas os lia), mas fui-me apercebendo de uma certa exiguidade do espaço editorial — estou a pensar nas editoras e não em revistas ou fanzines —, no qual não cabiam essas propostas quando se tratava de um livro em vez de poemas dispersos. E mesmo para autores já com obra publicada e algum reconhecimento parecia difícil publicar certos textos ou trabalhos que não eram os mais evidentes, inclusive pela extensão ou pelo tipo de suporte que tinham em mente. E assim comecei a pensar na Colecção 32, de plaquetes [livros agrafados] de poesia, convidando autores que viriam a publicar em 2013 e nos anos seguintes. Em 2014 saem os primeiros livros da colecção de poesia [Colecção Mutatis-mutandis] e de outras colecções. De facto, os primeiros títulos foram publicados em 2013 [Colecção 32], é esse o ano em que a Não aparece. Houve outros aspectos determinantes para pensar a editora e as suas colecções. No fundo, eram interesses pessoais ou perplexidades mas que serviram de motivação para não desistir da ideia e dedicar-me a ela. Por um lado, estranhava a escassez de tradução de poesia, se compararmos a nossa realidade com a de outros países, bem como a ausência de certos autores que me interessavam muito e que conhecia nas línguas originais. Falo de autores contemporâneos, sobretudo no campo poético, mas também de textos em domínio público que não tínhamos como ler em português. Essa questão da disponibilidade e leitura de traduções e do próprio exercício da tradução para português interessava-me; daí a Colecção Traditore, cujos primeiros livros seriam publicados em 2014. Por outro lado, também me interessava ler (e, portanto, editar) trabalhos que explorassem, assumidamente, dimensões menos evidentes na poesia, por exemplo pelo carácter visual ou o caso de textos em prosa ligados a um registo mais experimental ou mais indisciplinado; as questões do livro-objecto também, mas só mais tarde pude trazê-las para a Não. A prosa poética, por exemplo, interessa-me muito e desde cedo foi atravessando as várias propostas da Não. De resto, foi esse o caso do livro inaugural da Colecção 32, da Júlia Hansen, uma espécie de diário em prosa que vai descrevendo a escavação de um túnel após uma grande explosão.
Um editor não é um publicador, essas palavras estão longe de ser sinónimo uma da outra.
Na sua liderança do projeto, fundem-se o fundador, o editor, o leitor e o ilustrador. Qual o lugar efetivo do João Concha?
Bem, o editor é o leitor e não há forma de ultrapassar essa simultaneidade. O editor só o é enquanto leitor, ou seja, alguém que lê nos textos o que estes poderão vir a ser: o livro. O editor procura partilhar esses textos com outros leitores, talvez de acordo com uma ideia mais ou menos absurda (mas inevitável) de criação de uma comunidade de leitores de um dado texto ou escrita ou autor. E o processo de edição de um livro pressupõe desde fases iniciais a leitura, a escolha, o risco. E claro, afinidades electivas… ou o seu contrário, tudo isso é bastante decisivo. Durante esse processo o editor não só conversa com o autor como também com os textos, para depois os textos conversarem com os leitores (muitos ou poucos, não importa). A dúvida faz também parte do processo, muito mais do que a certeza ou a infalibilidade ou qualquer ideia de ‘liderança’, para pegar na palavra que usou. Às vezes tacteia-se no escuro mas isso não deixa de implicar que se mantenham critérios, inultrapassáveis, por mais difíceis de objectivar que estes sejam; um editor não é um publicador, essas palavras estão longe de ser sinónimo uma da outra. Depois, o editor pode ser, pontualmente, várias outras coisas. Por vezes o editor João Concha convida o ilustrador João Concha a colaborar nas capas sobretudo na Colecção 32, e ele aceita… mas em vez de ilustrações entrega desenhos, às vezes bastante abstractos, para as contracapas. Não é uma coexistência fácil. Por isso, e acima de tudo, devo dizer que o trabalho de edição tem uma dimensão colectiva e não diz respeito apenas ao editor. Pelo contrário, envolve cuidados e conhecimentos vários (de diversas áreas disciplinares), vontades comuns sem excluir as diferenças, cumplicidades entre aqueles (muitos ou poucos, depende) que permitem a um livro acontecer e ser lido.
A não (edições) abre um diálogo com o leitor que começa na sua própria designação. Que mensagem é esta que as palavras não e edições (e ainda os parênteses) propõem?
A palavra ‘não’ é importante… ainda agora falávamos da afinidade ou da não afinidade, não é? Experimentação, possibilidade, incerteza e proximidade fazem parte dessa não-agenda, procurando editar com tempo e, por vezes, a partir daquilo que está dentro de parênteses ou pouco visível — propostas, autores, textos. Interessa-me ainda mostrar outras dimensões menos divulgadas do trabalho de autores cuja obra conheço e acompanho. A ideia de alternativa ao que mais frequentemente circula ou tem visibilidade explica em parte que esse ‘não’ ganhe importância face a ‘edições’. Por muitos motivos, ‘não’ é uma palavra que permanece. Mais do que recusar, o ‘não’ exige.
A poesia vai ocupando os espaços ‘entre’ e escapa às definições. Aliás, custa-me bastante quando me tentam convencer de uma qualquer ideia de escrita de poesia que seja restrita ou excludente, como se um poema pudesse ser apenas ‘isto’ e não ‘aquilo’.
Estamos perante um projeto editorial maioritariamente dedicado à poesia. O que acrescenta a poesia à nossa vida? Já tem resposta para esta pergunta?
Essa é ‘a’ pergunta, mas para a qual não tenho uma resposta definitiva. Vou descobrindo ou encontrando. No meu caso, a poesia tanto pode dar (prefiro a palavra ‘dar’ a ‘acrescentar’, embora a poesia ‘exija’ e nada tenha de neutro) como rejeitar ou nem sequer comparecer. Não quero de todo estar a personificar a poesia, pois parece-me que é algo bastante furtivo que pode ou não suceder, que pode estar muito mais na realidade e num modo de a ver do que propriamente na escrita (ou nos textos em verso a que vamos chamando poemas). A poesia vai ocupando os espaços ‘entre’ e escapa às definições. Aliás, custa-me bastante quando me tentam convencer de uma qualquer ideia de escrita de poesia que seja restrita ou excludente, como se um poema pudesse ser apenas ‘isto’ e não ‘aquilo’. Oiço demasiadas vezes “a poesia tem de…” ou “um poema deve…”, poucas coisas sobre este assunto me embaraçam e irritam tanto. Mas depois penso novamente e percebo que o lugar destes discursos também é bastante relativo… Acho que não consigo responder-lhe mas é bom sinal que continuemos a fazer a pergunta.
O livro publicado pela não (edições) reveste-se de uma enorme materialidade e, até, a partir daí, de uma intimidade com o seu leitor. Como é que se compatibilizam a oferta de “objetos únicos” (ainda que repetíveis pela tiragem), com a necessária angariação de públicos?
Há pouco quando falámos da génese da Não faltou dizer que foi igualmente decisiva a questão da imagem e da materialidade, a atenção a dar ao objecto que é o livro e o seu aspecto gráfico. Queria muito trabalhar o diálogo entre formas textuais e visuais, por exemplo o desenho, a ilustração ou a colagem, e isso tem sido possível. Esse cuidado não pressupunha uma ‘fetichização’ do livro enquanto objecto e muito menos o interesse por edições com materiais luxuosos. Esse cuidado está muito mais enraizado no processo e na possibilidade de pensar com o(a) autor(a) e com o(a) artista ou ilustrador(a) o objecto final, em consonância com os textos, e isso sim poderá ser o meu entendimento de ‘objecto único’. Um texto ou um conjunto de poemas pode requerer um tipo de formalização — a colecção escolhida, a paginação, o tipo de papel ou de impressão, etc — e de desenho que outro trabalho escrito não suporta, mas as ideias de autores e ilustradores são também fundamentais. Ou seja, há vários caminhos possíveis, dependentes das leituras que editor e ilustrador(a) fazem, em diálogo com o(a) autor(a) ou partindo simplesmente da leitura. Essa intimidade faz parte do processo, ou seja, é procurada e dá muito trabalho, claro, para que encontre eco no leitor. A propósito da materialidade dos livros, tenho que dizer que esse diálogo e esse cuidado com o ‘objecto’ não significam uma exclusão de materiais simples ou uma apetência só por materiais ditos ‘nobres’. Aliás, essa ideia de nobreza de um material não tem assim tanto cabimento no caso da Não, pois acredito que a forma como um material (qualquer que seja) é escolhido e utilizado pode ser pensada à margem dessa ideia valorativa mais convencional. Pelo contrário, a impressão digital e o formato plaquete tiveram lugar desde início na Colecção 32, o que não impede o tal cuidado e a tal intencionalidade. Porém, há colecções ou livros com outras características e preocupações mais específicas em relação à materialidade. As possibilidades expressivas do ‘livro’ interessam-me muito e em 2020 foi possível, finalmente, começar a publicar a chancela Fora de Colecção, há muito desejada. Aí sim, falamos de objectos relativamente únicos, como por exemplo o livro-objecto de Ricardo Tiago Moura [Política], com uma certa dimensão artesanal e numa edição numerada em que cada exemplar tem um dístico manuscrito pelo autor. A tiragem de apenas 100 exemplares é única, pelo que não será reproduzida futuramente com este formato. Tudo isto envolve despesas e, obviamente, foi uma edição cara, cujo custo de produção não será nunca compensado pelas vendas (prejuízo garantido, portanto). Sobre tiragens queria ainda dizer que a Não começou em 2013 por publicar 100 exemplares de cada título, tendo depois passado a editar um número de exemplares variável entre 150 a 300. E, claro, se um livro esgota num curto espaço de tempo a minha vontade, se o(a) autor(a) concordar, é reeditá-lo, para que continue a poder ser lido e a encontrar novos leitores. Serão mesmo 300 os leitores de poesia? Não me preocupa a ‘angariação de públicos’, no sentido em que essa questão peca por ser indiferenciada e muito abstracta, interessando-me sim que cada livro encontre o seu leitor. E a materialidade faz parte desse diálogo ou dessa intimidade que a Não pretende construir com quem lê, pois o suporte e as suas características (visuais, tácteis ou outras) não são indiferentes para a experiência da leitura.
A Não existe porque existem autores e, sem dúvida, porque esses autores são cúmplices e generosos, permitindo processos de trabalho que escapam às lógicas do valor de troca, da compensação monetária, da subsistência económica.
A materialidade subjacente ao livro da não (edições) sugere desde logo essa relação de proximidade com o autor. Que trabalho de construção é feito afinal com o autor até chegarem à versão impressa?
Todo o trabalho só pode ser feito com o autor, ainda que as condições para tal possam variar em cada caso, em cada livro. A Não existe porque existem autores e, sem dúvida, porque esses autores são cúmplices e generosos, permitindo processos de trabalho que escapam às lógicas do valor de troca, da compensação monetária, da subsistência económica. Falávamos da cumplicidade com o leitor, mas convém sublinhar a cumplicidade com quem faz os livros, envolvendo ainda a tradução e a ilustração. Cumplicidade essa que é construída e não pode ser forçada, e que tem lugar para a divergência e para a discussão de ideias. Por vezes essa proximidade é construída à distância, embora as noções de distância e proximidade sejam complexas, como sabemos. Essa comunicação à distância acentuou-se com a pandemia, mas na verdade já acontecia assim em vários casos, quando os autores não viviam aqui. Há sempre muitas mensagens e emails trocados, além de conversas. Parece-me que estes aspectos, desde uma grande informalidade a uma maior liberdade criativa, também participam de uma certa distinção entre a edição independente e a dos grandes grupos editoriais. Para estes últimos as questões do retorno e do lucro estão necessariamente presentes até pela dimensão das estruturas e dos negócios que promovem. Para uma pequena editora, como a Não, a sustentabilidade é importante, ou seja, não perder demasiado dinheiro com um livro para poder continuar a editar e, assim, publicar o livro seguinte. Isto significa que a instabilidade está lá sempre e que há uma grande incerteza sobre o plano editorial a cada ano, dificultando opções de subscrição anual e outras que alguns leitores têm pedido; e que podiam contribuir para uma maior proximidade com os leitores. Poderá parecer estranho abordar estas questões, mas de facto as limitações, por um lado, e a proximidade ou a cumplicidade, por outro, são um traço comum nos processos editoriais de muitos projectos de menor dimensão, como é o caso da Não.
No portefólio da não (edições), encontramos obras menos conhecidas de autores consagrados, como Patti Smith ou Paul Auster. É uma alternativa assumida para um conhecimento dos autores que o mainstream não dá?
São textos que, provavelmente, não seriam traduzidos cá. Pelo menos as editoras habituais de Patti Smith e Paul Auster não demonstraram esse interesse e o mesmo sucede com textos de outros autores. E para alguns, mais conhecidos por outras vertentes do seu trabalho, é mesmo a possibilidade de divulgar a sua escrita. Estou a pensar no Chroma, de Derek Jarman [cineasta e artista visual], livro que teve três tiragens e se manteve disponível enquanto a Não detinha os direitos de edição. Curiosamente, são esses os textos que mais me interessam, os mais inclassificáveis e que se aproximam da tal noção de prosa poética, de escrita entre géneros, entre a prosa e a poesia, aproximando-se ou não da ficção, da auto-ficção ou do ensaio. No caso de Auster o seu Espaços em branco [tradução de Conceição Sendas] é um trabalho que marca a transição entre a poesia e os romances, texto no qual já estão condensados muitos temas que iria desenvolver mais tarde nos livros que o celebrizaram, incluindo a relação entre o corpo e a escrita.
Para além dos consagrados, assistimos também na não (edições) à estreia de novos autores, como Inês Francisco Jacob, já aqui entrevistada com o seu primeiro livro, Sair de Cena. Como se constrói a apetência para identificar um talento potencial?
Não sei se existe essa apetência ou se existe sequer o ‘talento potencial’. Sei que existem leituras que me convencem e surpreendem. Textos ou poemas que são, em si mesmos, uma voz singular, formas de ver e de dizer particulares. Apesar de um poema ser uma construção, com tudo o que isso implica e também por isso mesmo, ou leio alguma verdade nele… ou não. E é isso que se evidencia.
Na cadeia de valor do livro, como é que o editor olha para o papel da livraria? Que lugar deve ser o ponto de venda?
As livrarias e os livreiros, quando assim querem e sabem, participam no processo de mediação entre editores e leitores, transformando o ‘ponto de venda’ num espaço de troca de ideias, de verdadeira partilha. Há livrarias muito diferentes, desde as que pertencem a grandes grupos até às independentes ou mesmo especializadas num género, como a Poesia Incompleta [Lisboa]. As independentes são os lugares que prefiro como leitor e, se quiser, como consumidor, evitando as permanentes campanhas de desconto das grandes livrarias sem que o editor seja informado e que viciam as lógicas de compra/venda. Não estou em guerra contra essas grandes, mas prefiro outras e faço as minhas escolhas, temos todos um papel nisso. As chamadas livrarias independentes recebem não só os livros como também os lançamentos, as leituras e as conversas com outra informalidade, com outra coragem e risco. É sobretudo nas independentes que se encontram os livros da Não, cada vez mais.
São necessários poucos minutos para ler um poema curto que pode ficar a ecoar durante anos.
Um (bom) editor é antes de tudo um leitor experiente. Como é que, do seu ponto de vista, se pode estimular a leitura num tempo que compete com o texto curto e ziguezagueante do digital?
Os poemas, mais curtos ou em extensão, também podem ter o seu quê de ziguezagueante, na forma como perturbam o sentido ou torcem a linguagem… e a disrupção de um poema ou a descontinuidade que alguns livros de poemas permitem, se quisermos, poderão favorecer a leitura de poesia, mesmo em tempos especialmente áridos como estes. Mas sim, o tempo, inclusive o tempo de leitura, parece tornar-se cada vez mais rarefeito ou mais desatento. E a leitura de poesia pode exigir muito, um tempo outro e uma disponibilidade incompatível com rotinas que tragam toda a paciência. São necessários poucos minutos para ler um poema curto que pode ficar a ecoar durante anos. Eu reconheço a capacidade de certos textos poéticos, isto é, da sua linguagem e da experiência que comportam, para abrirem uma brecha nesse círculo vicioso do qual nos queixamos. Os poemas, precisamente os poemas, poderão ser aquilo que escapa à comunicação rápida e utilitária, e, por isso mesmo, apresentar-se como ‘outra coisa’, procurada por alguns. Depois, de um ponto de vista mais pragmático, há ideias que se conhecem ou que vão sendo experimentadas no campo da leitura e da mediação, seja por gente das escolas, das bibliotecas e dos serviços educativos, seja pelos próprios autores e editores, que tentam levar a literatura a outros, passando isso por sessões de leitura em voz alta ou conversas em torno de livros, por exemplo. Nada substituirá a experiência da leitura, mas há textos e livros que pedem esse trabalho e, de um modo geral, algumas dessas actividades podem ajudar a estimular leitores recentes ou a criar leitores mais atentos, com uma perspectiva mais crítica.
Que livro(s) lê agora?
Este ano têm sido muitos livros que pouco têm que ver com literatura… coisas técnicas a que a minha tese de doutoramento [em Arquitectura dos Territórios Metropolitanos Contemporâneos] tem obrigado, sobretudo nesta fase final. Mas também não acredito muito numa separação entre certos géneros e, na verdade, alguns textos bem interessantes que li nestes anos vêm do campo da divulgação científica ou do ensaio, não da ficção ou da poesia. E alguns são, de facto, literatura, provavelmente com maior arrojo do que muitos dos livros publicados a cada mês e tidos como grandes narrativas, por exemplo. Coisas como o livro The Black Swan, de Nassim Taleb, ou os ensaios de Brian Dillon retiram-nos algumas das habituais seguranças. Interessam-me muito os textos híbridos, como por exemplo os de Anne Carson, sendo que o Norma Jeane Baker of Troy foi uma das últimas coisas que li e de que mais gostei! Agora estou a ler O Atelier de Noite, de Ana Teresa Pereira, e a reler dois livros relacionados com a Não — sempre que possível misturo trabalho e prazer. São dois títulos a publicar [2021 e 2022], com as respectivas traduções quase concluídas e de cuja revisão me ocuparei, mas não gostava de revelar mais…
+ Informação não (edições)
.