Num dos pontos gastronómicos obrigatórios da Graciosa, o restaurante Estrela do Mar, deixo-me levar numa inopinada troca de palavras com um casal afável, no qual coloquei os olhos logo que entrei. Ambos muito bem-dispostos e numa conversa permanente entre os dois, percebem que estou à deriva na observação do mar que víamos da janela e que fazia precipitar uma outra ilha, bem visível dali com as condições atmosféricas particularmente favoráveis daquele dia.

«É São Jorge, onde já morámos há uns bons anos». Disse a senhora, expedita. «E agora moramos em Santa Maria, embora fiquemos por uns 3 meses, por ano, aqui na Graciosa, daí estarmos aqui, agora». Acrescentou. Com a Maria, o seu nome que fiquei entretanto a conhecer, partilhei que daquela ilha seguiria com a família para Santa Maria, precisamente, o que lhe valeu quase uma reflexão de vida. «Hoje, está completamente diferente. Em tempos idos, era uma ilha à parte, desconfiada das pessoas de fora, metida na sua própria insularidade, sem qualquer cumplicidade com as restantes ilhas. Eventualmente perdida entre os milhares de estrangeiros que passavam quando ali era obrigatória a escala de tantos voos intercontinentais, dada a base militar estabelecida pelos EUA, corria o fim da Segunda Grande Guerra, e a posterior inauguração do aeroporto propriamente dito, o primeiro de todo o arquipélago. Corria o ano de 1946».

O seu marido, José, que fiquei a saber que fora controlador aéreo, acrescentou que, com a autonomia tecnológica alcançada pelos aviões, deixou de fazer sentido manter Santa Maria como escala técnica dos voos entre a Europa e o continente americano, embora, lembrou, este aeroporto tenha inclusive assistido à passagem do Concorde, em 1977, no trajeto Paris-Caracas. José sabia do que estava a falar. Tinha sido controlador naquele que, não obstante o fim das escalas técnicas, continua hoje a ser o centro de controlo aéreo do Atlântico, ali instalado, abrangendo uma vasta área do Atlântico Norte.

E São Jorge, do outro lado do mar, assiste à nossa conversa encerrada com palavras de afeto entre famílias, no momento do café e da conta. E porque, em bom rigor, a conversa ganhou intensidade ao trazer a memória de Santa Maria como a ilha que regista o maior acidente aéreo em território português: um Boeing 707, da Independent Air, que em 1989 se despenhou no Pico Alto com 144 pessoas a bordo. Dali, seguimos para o Parque Florestal da Caldeira, um lugar ao estilo do país das maravilhas, a provar o que ouvi de tantas bocas locais: «a Graciosa é a ilha mais cheia de sol e luz dos Açores». E é também a mais plana. A circulação de carro é feita de forma pacífica e previsível, sem arrepios, o que não se verifica em Santa Maria, carregada de caminhos íngremes a enfrentar com coragem, astúcia e sangue na guelra.

Na Graciosa, o mais íngreme que sinto é a distância entre o olhar a partir do icónico Farol da Ponta da Barca e o Ilhéu da Baleia, rodeado de águas absolutamente resplandecentes. No município de Santa Cruz da Graciosa, a localidade principal, podemos encontrar a Zona Balnear do Barro Vermelho, constituída por rochas basálticas que entregam àquele lugar um cenário idílico para merendas e banhos no mar, que intercalámos com outro local referenciado para comer, a Casa de Pasto o Leão.

Mas onde fico refém de pensamentos e sem palavras é no Parque Natural da Graciosa, no interior do qual temos acesso à Caldeira e à Furna do Enxofre, das coisas mais maravilhosas que vi e conhecida como uma das maiores cavernas vulcânicas do mundo. Aqui, sentimos a terra em profundidade, com a particularidade de termos de descer dezenas de degraus em escadas acidentadas, que nos levam a uma arquitetura natural confundível com a ideia de perfeição. Num outro ponto da Caldeira, na sua borda, alcançamos de carro lugares igualmente mágicos e desconcertantes, como a Furna da Maria Encantada, um horizonte de luz único sobre o interior verde da Caldeira, e o Miradouro da Luz, com um balouço que permite roubar ao tempo corrido o repouso da contemplação. Já no Parque Eólico da Graciosa, avistamos a Caldeirinha, uma réplica da Caldeira da Graciosa numa dimensão tão mais pequena que temos à primeira vista a impressão de poder caber na nossa mão e percebemos, já perto, que podemos na mesma ser engolidos pela sua grandeza. Na relação com a natureza, ali em particular, todas as nossas forças são bonecos de encantar crianças.

Num outro lugar que a gastronomia recomenda, na Graciosa, o Toma Lá Dá Cá, vemos concentrados os moinhos de origem flamenga mais bonitos da região, num contaste apetecível entre o encarnado, o verde da moldura natural e o azul do mar, que também nos dá, a partir daquele restaurante, uma vista única sobre o Ilhéu da Praia. Muito perto dali, encontra-se uma das praias mais pitorescas onde alguma vez estive: a Praia de São Mateus, na qual mergulhámos numa água límpida e quente e acolhemos o descer do sol nesta ilha de luz e lucidez. Os pés descalços, numa areia entre o creme e o castanho-claro, levam a todas as extremidades do corpo a vibração de uma ilha que parece ainda por descobrir, como um segredo que não se traiu.

Na Graciosa, é obrigatório visitar também a Praça de Touros, estrategicamente encaixada numa cratera, junto à Ermida de Nossa Senhora da Ajuda, com uma vista preponderante sobre a ilha. Com ela competem outros lugares com ângulos de observação únicos: a Nossa Senhora da Luz, o Porto Afonso, a Baía do Filipe, a Serra das Fontes ou a Fonte da Areia. Acrescentamos a estes um lugar de vista privilegiada, o Carapacho, de onde são avistadas simultaneamente as ilhas de São Jorge, Faial e Terceira. É mais um ponto global, agregador, que nos leva a tatear com o olhar o mapa açoriano. E que nos diz tudo sobre a proximidade, a pequenez, a distância e as esparsas vias através das quais o contacto se faz para a vida acontecer.



Uma escala em Ponta Delgada, em São Miguel, permite-nos chegar a Santa Maria, de onde no fim fomos diretos para Lisboa. Ocupamo-nos da descoberta de mais uma ilha açoriana, aquela que liderou parte significativa da nossa conversa com o casal da Graciosa. No lugar onde ficamos alojados, em Santa Maria, um livro em destaque na receção desperta a atenção dos meus olhos: Comoro, um aeroporto em Timor-Leste, de Jorge Arruda. O que teria Timor a ver com este lugar? Penso. Percebi ao folhear da capa para a badana que Jorge Arruda, o homem que dirigia o Aeroporto de Santa Maria aquando do acidente aéreo de 1989, teve papel determinante na gestão do consórcio português que assumiu o controlo do aeroporto de Díli, em 2001.

Confesso que a subida ao Pico Alto, com 590 metros de altura e uma vista total sobre a ilha, me impressiona por conter no cume um memorial que nos remete para o acidente do avião de que José nos falara e que as notícias da época dificilmente se colariam à minha memória de então, dada a minha idade de menina pequena. Mas o arrepio que se sente extravasa o número de anos passados. Atravessa-nos pelo espírito o raciocínio sobre um trajeto de vida interrompido. Vezes 144 vidas.

Mas a partir dali apoderamo-nos da ilha na sua amplitude total e da cisão visível na sua topografia. Imediatamente me lembrei da subida que em 2007 fiz à Torre da Televisão, em Berlim, de onde se percebe uma cidade partida em dois ritmos de desenvolvimento nos antípodas, duas cores, dois aceleradores com direções invertidas. No cume do Pico Alto, avistamos uma metade da ilha bastante plana e previsível e uma outra ornamentada pelo recortado de vários acidentes geológicos e sucessivos trilhos improváveis.

O caminho escolhido até à Baía de São Lourenço, uma das praias mais procuradas em Santa Maria, permite-nos ganhar novas objetivas fotográficas sobre o mar que circunda a ilha. O Miradouro da Macela, a Baía da Praia Formosa, a Ponta do Castelo e a Maia vão-se sucedendo no circuito, no carro alugado, com traquejo visível naquelas paragens. Vários dos lugares são pontuados com a Casa dos Livros, pequenas instalações inspiradas nas caixas de correio tradicionais que alojam livros e de onde podemos levar um livro ou deixar outro. Por todo o lado, há este apelo declarado à leitura e à preservação dos livros, os nossos e os dos outros, numa perceção gráfica intercalada com as chaminés da casa típica de Santa Maria, cuja origem diferentes historiadores dizem estar, ora nas chaminés dos antigos navios a vapor, ora nas casas algarvias e alentejanas.

Dois outros lugares de interesse na ilha são o Barreiro da Faneca, considerado o “Deserto Vermelho dos Açores”, com uma área de cerca de 835 hectares de uma vibrante paisagem árida e argilosa (e a única experiência de deserto que tive); e o Poço da Pedreira, tão antigo como os filósofos de referência e de onde eram extraídos blocos de pedra e também aqui a distinguir-se uma particular coloração avermelhada ao longo de uma parede misteriosa e imponente. Num trilho longo, surge ainda a Ribeira do Maloás, lugar perigoso que nos leva numa fila indiana criteriosa junto à escarpa de uma montanha, de um lado, e à altitude da vista sobre o mar que um pé em falso pode fazer derrubar o corpo fatalmente. A natureza na sua rebeldia infinita e indomável, na sua plenitude e sumptuosidade. Que só percecionamos por acaso, quando descobrimos que Santa Maria é outro segredo (ainda) bem guardado. Palpável numa experiência pessoal e intransmissível. Indizível.

Na bonita Vila do Porto, onde voltámos vezes repetidas, são obrigatórios o Clube Naval, o Museu de Santa Maria, instalado num edifício recentemente projetado numa obra arquitetónica moderna, a Biblioteca Municipal, num tom de tijolo intenso, e o Forte de São Brás, a robustecer a insularidade. Neste centro mais urbano do que todos os outros em Santa Maria, encontramos várias opções para comer e beber um copo, permanecer entre os minutos do tempo que por ali desaprendemos de contar.

A última visita antes do aeroporto posiciona-nos no Farol Gonçalo Velho. Dali, apercebemo-nos da supremacia da luz refletora sobre o mar, sinalizando a morada específica daquele lugar no centro do mundo, como no centro do mundo está o que vemos pela primeira vez.


 

.

error: Content is protected !!