2023 foi, para mim, mais um ano de leituras profícuas, ávidas, compulsivas. Continuo, aliás, a ser uma leitora compulsiva e, a contratempo com a tendência criada pelo digital e a ditadura do ecrã, os meus olhos mantêm-se mais realizados, sempre, no papel.  31

Em 2023, li Três Amigos e Um Desejo, uma história para crianças, que não é apenas uma história para crianças, com a assinatura firme de uma amiga, Benedita de Albuquerque, a autora, e João Bacelar, na ilustração. Três grandes felinos, num outro tempo, há muito, muito tempo, encontram-se na savana. O Tigre Smart, a Chita Speed e o Leão Strong. A dimensão portentosa, a força, o estatuto poderão ser atributos, indiscriminadamente, apontados aos três. Curiosamente (ou não), todos ostentam e partilham entre si o consenso sobre uma profunda insatisfação com o que são. Querem, afinal, ser diferentes. Uma estrela cadente, com efeito, concede-lhes milagrosamente o desejo de passarem a ser diferentes, efetivamente, e eis senão quando… Surge o confronto com uma nova “personagem” na qual, com espanto, não se reveem.

Voltei, claro, a José Tolentino Mendonça, que este ano foi reconhecido com o prestigiante Prémio Pessoa. Não comecei por este, mas tendo já perdido a conta dos seus livros lidos, sei que este se distingue por ter sido o primeiro de poesia que li do autor: Introdução à Pintura Rupestre. Todos os outros que posso retratar de Tolentino Mendonça agregam crónicas, ensaios ou aforismos. Faltava-me, de facto, chegar à sua poesia. E a frase que me parece sintetizar o livro inteiro diz assim: «Uma parte da beleza do mundo permanece anónima». Aqui, encontra-se personificada, intacta e imutável a ideia de que há algo maior do que nós, além dos nossos olhos. E a cuja descoberta a nossa sabedoria ainda não chegou, por ser insuficiente para saber tudo. Há partes do mundo às quais não chegámos. E que nessas partes, diz-nos Tolentino Mendonça nas suas palavras refletidas, o que há é belo.

Não me fiquei, é certo, pela sua poesia. Em 2023, li também Uma Beleza Que nos Pertence, que retratei como lugar literário de exploração da imperfeição que nos humaniza. «Na imperfeição é sempre possível começar e recomeçar». E recomeçar com espanto, como nos desafia Tolentino Mendonça. «Precisamos de reencontrar o espanto». E persegue uma ideia estrutural do seu pensamento: «O significado das coisas não é apenas o que elas têm em si, mas o que podemos descobrir que elas têm para nós». No livro, somos confrontados com a ideia de parar. Da contemplação. Da celebração (que implica desacelerar). E da importância da espera e do que se espera. «Quem quiser conhecer-nos profundamente, aceite ouvir-nos falar daquilo que esperamos». E aí seremos devidamente apresentados. Do mesmo autor, li também, ainda por retratar, Metamorfose Necessária.

E li, ainda, vejam só, as suas palavras no Prefácio de um outro livro que marcou o meu ano: Gotas no Charco, de Mafalda Ribeiro. Neste livro editado pela Have a Nice Day, com ilustrações de Eunice Rosado, o Prefácio que parece dialogar diretamente com cada um de nós, e uma belíssima nota da editora, Ana Rita Ramos, encontramos reflexões da Mafalda arrumadas em 7 temas categóricos: Ligação, Esperança, Liberdade, Consistência, Gratidão, Aceitação, Entusiasmo. Para lá do «noturno cerco» de que nos fala Tolentino Mendonça, este livro traduz, prova, valida – dúvidas houvesse – que há sempre qualquer coisa a fazer, independentemente do nosso ponto de partida, da nossa condição e dos nossos limites. Assim arregacemos as mangas e nos façamos à estrada. Há um caminho que é nosso.

Voltei a Raquel Serejo Martins, desta vez ao seu mais recente livro, de viagens: Yoko Meshi. «This is how the Japanese define the peculiar stress induced by speaking a foreign language». Eis o esclarecimento feito no início deste livro itinerante, para nos situar e recompor do desconforto provável gerado no contacto com a capa, com o título. Afinal, quem sabe o que significa Yoko Meshi? E é justamente a curiosidade gerada à volta destas palavras que nos leva nesse caminho imprevisível da viagem. O livro que temos em mãos é um livro de viagens. Que é também – que dúvidas há? – um livro de poesia, o género ao qual nos habituou Raquel Serejo Martins e pelo qual comecei a lê-la, para me preparar para a entrevista que tive o privilégio de lhe fazer. No livro, o que lemos é o pensamento de Raquel Serejo Martins no decurso destas viagens. Ocorre-me Virginia Woolf, claro. Não é a viagem descrita. É a viagem acabada de chegar ao pensamento. O pensamento como ele é: veloz, imprevisível, enigmático, ingovernável. Soberano. Como a viagem.

Em 2023, como se de um fio condutor se tratasse, acompanharam-me também dois livros ligados a um dos líderes mundiais mais carismáticos, o Papa Francisco. Francisco O Caminho, um livro em que a jornalista Maria João Avillez relata os episódios e as emoções inerentes ao momento transformador da sua vida em que, em 2022, entrevistou o Papa, em Roma. O outro livro, Não Tenham Medo!, com a coletânea dos discursos e homilias do Papa Francisco na Jornada Mundial da Juventude (JMJ), em agosto, em Lisboa. A pessoa que se revela na conversa com Maria João Avillez, além do papel papal, é um ser incrivelmente próximo, que nos vem falar, de coração aberto, de um ativo em défice: a esperança. Com as intervenções da JMJ reunidas em livro, somos convocados para as mudanças que se impõem neste tempo, com uma palavra de ordem que, na verdade, são três, sobre quem afinal deve estar envolvido: «todos, todos, todos».

Fiz várias incursões pela poesia, em 2023, e aterrei numa obra de arte: Habitar: Um Ecopoema, Scott Edward Anderson. Norte-americano com ascendência açoriana, dada a sua família ancestral ser de São Miguel, Scott Edward Anderson tem pela ilha portuguesa uma paixão que observamos implícita à sua escrita e, em concreto, a este belíssimo Habitar: Um Ecopoema. Recebi-o das mãos da minha editora, Virgínia do Carmo, como um dos títulos fortes que publicara, com tradução da reputada Margarida Vale de Gato. Li-o num ápice. Este livro é – tem efetivamente esse efeito – um lugar em que nos sentimos em casa. Aliás, este livro é uma casa.

Também fez parte da minha lista em 2023 O Aroma do Tempo, do filósofo germano-coreano que sigo desde que o descobri em 2022, Byung-Chul Han, um dos autores mais instigantes sobre o tempo e o que com ele fazemos, a velocidade e a falta de direção e sentido que tantas vezes caracterizam a atualidade. Com o subtítulo “Um Ensaio Filosófico sobre a Arte da Demora”, Byung-Chul Han fala-nos neste livro de uma «crise temporal» e da «dispersão temporal». «Falta ao tempo um ritmo ordenador», diz-nos. E reforça: «Não há nada que reja o tempo», chamando a atenção para o impacto da velocidade.

A Arte de Ter Sempre Razão, de Arthur Schopenhauer, e Mulher de Porto Pim, de Antonio Tabucchi. Eis mais dois dos livros que li, ainda sem retrato. Em momentos diferentes, iniciei O Dever de Deslumbrar – Biografia de Natália Correia, de Filipa Martins, e À Procura da Própria Coisa – Uma Biografia de Clarice Lispector, de Teresa Montero. Porque continuo a perder-me por biografias.

Mesmo a terminar o ano, e num apelo a um dos lugares cada vez menos valorizados, li O Silêncio, do norte-americano Don DeLillo, que uma querida amiga me ofereceu e que contribuiu para uma reflexão de transição de ano sobre o estado do mundo em que (mal) vivemos.

2024 começa. E volta a estar tudo em aberto no paraíso que é ler, como diria Borges.

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