N uma chuvosa manhã de domingo, fui a Campo Maior para uma conversa com uma figura maior, um representante do ser português com impacto internacional, do investimento com benefícios globais, do profundíssimo respeito pelo outro: o Comendador Rui Nabeiro, condecorado com a distinção Honoris Causa em Coimbra. A conversa foi gravada no contexto dos 10 anos da PWN Lisbon, organização vocacionada para o desenvolvimento do talento e da liderança, na qual sou voluntária e da qual o Entre | Vistas é parceiro. O encontro com o Comendador Rui Nabeiro partiu da irreverência do livro Almoço de Domingo, assinado por José Luís Peixoto para contar a história de um consensual modelo de conduta, um empresário, um líder, um humanista que aos 90 anos decidiu deixar escrita a vida, partilhados os valores e vincada uma obra maior do que o próprio homem.
Estamos no Centro de Ciência do Café e é por aí que começo. Para além das componentes científica e pedagógica do museu, temos a vertente cultural que procura, a partir do café, atrair pessoas para Campo Maior. Essa é uma das suas preocupações de sempre: ligar pessoas; promover o encontro entre comunidades; abrir as portas da região. Campo Maior não é apenas o seu lugar de origem e a sede da sua obra. É também um propósito, uma visão sobre a marca que quer deixar na sua comunidade, certo?
Sim, sem dúvida. Pensei sempre como fazer melhor. A origem dos meus pais e as dos meus avós, maternos e paternos, era o campo. Alguém tinha de pensar, portanto, como transformar as coisas. Eu comecei a trabalhar muito cedo. Fiz a escola primária e naquela altura já era muito bom, dado que a maioria não tinha nada. Procurei, então, criar uma vida de conhecimento, de proximidade às pessoas, como ter as pessoas do meu lado e ser alguém em quem as pessoas pudessem confiar, alguém que soubesse sonhar.
Procurou com certeza assumir esse papel de envolvimento na comunidade também como Presidente da Câmara de Campo Maior, função que desempenhou mais do que uma vez. Mas encontrou na indústria muito mais para fazer pela sua terra…
Considerei-me pela teimosia, para chegar a esse campo da política, já que em Campo Maior e em todo o Alentejo só era presidente de câmara quem tinha uma determinada origem familiar… E eu disse para mim que um dia haveria de retirar o lugar ao senhor presidente [sorriso]. E consegui fazê-lo por duas vezes, nos anos 1960 e, mais tarde, nos anos 1970. Tive uma vitória enorme e fiz um trabalho intenso já ligado ao comércio.
Recuamos a 1961, ano da fundação da Delta. Que significado tem esse marco para o fundador?
Os meus pais trabalhavam muito. E a minha mãe era muito amiga de facilitar a vida aos outros. E eu devo ter ficado também com essa “doença”. E criei, de facto, a nossa empresa. E é sempre assim que a ela me refiro, no plural. Começou por ser uma operação pequenina, com a Camelo. É que tive também um tio [Joaquim] que me deixou ser homem. Ele precisava de uma pessoa com garra e escolheu-me a mim. Ele era um pouco nervoso, tenebroso e eu era o homem do equilíbrio. Ora, quando ele se retirou, fiquei eu. O meu lema era tratar bem quem não tinha. Havia muitas crianças sem nada. Sonhei sempre que lá pudesse ter dentro da nossa empresa um espaço para acolher com dignidade as crianças.
Fazia parte do seu sonho…
Fazia, fazia! Nasceu então um ATL com muitas condições e que tem vindo a melhorar sempre.
No universo Delta, encontram-se em lugares de gestão e decisão alguns dos seus próprios descendentes. O que é que lhes exige para assumirem as suas funções? Qual o legado que pretende que preservem?
O que eu realmente aconselho é que temos de acompanhar, sempre. É a minha forma de vencer. Eu tenho, inclusive, um slogan: quando os outros vão, eu já venho de volta. Quer em relação ao cliente, quer em relação ao trabalhador. Há que dar atitude a quem fica, que são os filhos e os netos. Agora já estou um pouco mais cómodo. Mas para manter uma casa com a dimensão desta, que é algo extraordinário, têm que os meus filhos e os meus netos, suportados numa evolução técnica que eu não tive, preservar os valores.
E o que é que aprende com eles?
Ficarei agora aqui envergonhadamente a falar. Sei que os meus filhos e netos não me vão enganar. Eu não lhes mostrei um caminho errado e estou profundamente convicto de que eles também não o farão.
Até porque têm um modelo incontornável.
Sem dúvida! O mundo precisava desta atitude desta empresa. Não é o meu exemplo. É o desta empresa.
No dia 25 de outubro de 1953, celebrou o seu casamento com Alice. Fale-nos da importância desta mulher na sua vida e na sua obra.
Posso responder, hoje com a mesma crença, que a Alice me deixou ser homem. Quando se tem uma mulher assim… é-se um homem livre. Ou ao contrário, será igual. Só se pode ter êxito, se houver paz na nossa casa. E nós soubemo-nos respeitar mutuamente. Eu já a conhecia há muito, há dez anos que namorávamos. Como não havia muito acesso ao namoro, casámos. Ela ficava em casa. E também a minha sogra, que vivia connosco, acabava por lhe fazer companhia e dar suporte à família. E quem tem essas condições, tem o mundo. E foi isso que eu consegui: foi o mundo.
Em plena pandemia é construída pela mão do escritor José Luís Peixoto a obra Almoço de Domingo, encomendada por si. Sentiu a necessidade de fazer a prova de que o passado existiu (para recorrer às palavras do livro)?
É uma pergunta curiosa e que realmente dá gozo. Não é que sentisse essa necessidade, porque eu tinha o mundo comigo. Mas há sempre débitos que temos para com as pessoas que nos querem. E o público em geral tem por mim tanta amizade, que de facto não seria necessário. As pessoas já me faziam esse reconhecimento. Mas com este livro e com esta pessoa que escreveu o livro… há um dia que ouvi o José Luís Peixoto numa entrevista na RTP, fiz a minha leitura e pensei: vai ser este senhor, para fazermos uma obra diferente. Uma obra que no amanhã sirva para alguma coisa. Ao mesmo tempo, foi uma prova de agradecimento ao público. Não foi para mostrar a minha grandeza, que tenho um carro, um furgon, dez camiões ou muitos armazéns… Não, de forma alguma! Foi um livro para mostrar a minha humildade e o amor e a amizade que tenho pelas pessoas.
Foco-me na curiosidade, já que é de uma enorme irreverência: porque escolheu um escritor para o fazer? O que lhe acrescenta a ficção?
Acrescenta uma abordagem mais técnica, mas muito natural e muito verdadeira. Fala da minha mãezinha, do meu Rui… A ideia era poder entregar a uma pessoa idónea a capacidade de fazer uma fotografia do que sou. E dos valores.
«Ser patriarca é, em grande medida, sobreviver», lemos no livro. Como é o seu entendimento da liderança?
Sabe, ser patriarca, como diz, é sonhar ser capaz de fazer. Patriarca é aquela pessoa que dá força, que dá querer.
«Há lições que só se aprendem depois de uma vida inteira», diz-nos o livro. Que lições pode partilhar aos 90 anos?
São muitas, práticas e objetivas. Aquilo que realmente posso afirmar é que o que eu fiz na minha vida foi ter uma inveja pura, saudável dos bons exemplos. Aquilo que aquele faz, eu também posso fazer, pensei sempre. E saber estar com as pessoas, evitando que sejamos, de um lado, os patrões e, do outro lado, os empregados.
«É o trabalho que traz o futuro», lemos. Fale-nos melhor da sua ideia de futuro. Quais são os projetos do Sr. Comendador, aos 90 anos?
O trabalho faz tudo. O trabalho é a parte mais saudável que o país, aliás, o mundo, pode ter. Sairmos de casa com gosto. Independentemente de ser sábado ou domingo, como hoje. Pensar que, mesmo neste sábado ou neste domingo, temos uma missão. Ter amor ao trabalho. Ter amor às causas. E ter amor em servir bem. Tratar melhor.
Deixo-lhe, para terminar, uma pergunta que encontramos na capa da última edição da DDD – D De Delta, sobre a qual a sua neta, Rita Nabeiro, faz uma belíssima reflexão. «Vamos mudar o mundo?» É esta uma das suas perguntas?
Vamos. Porque hoje há técnica (e antes não havia), há vontade e há querer. Tenho a certeza absoluta de que essa frase tem essa força. É a força da família. Eu sei que um dia, mais ou menos próximo, não estou cá. Mas vou descansado, porque o resto da família faz o resto. Não podemos perder um milímetro daquilo que as pessoas pensam de nós e falam por nós. A nossa arte não é nós dizermos que somos. É: antes de dizermos que somos são os outros que estão a dizer por nós que não paramos. Foi sempre isso que disseram de mim: este homem não para; este homem não sossega, este homem não dorme.
E continua a sonhar [sorriso].
Exatamente. Agora com mais tranquilidade.
Fotografia com cortesia de Gonçalo Villaverde.
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