Bangalô consiste numa miscelânea de insanidades atrás de insanidades colocadas na ponta da língua de um louco, sobranceiro e crítico acérrimo da sociedade em que vive. Contra todas as expectativas, insanidade após insanidade vamos reconhecendo que este Bangalô é, afinal, um romance. Uma obra de ficção incómoda e incomodativa. Muito incomodativa.

Escrevia eu, em agosto de 2016, um texto para publicar aqui sobre a partida de André Jorge, o cofundador da Livros Cotovia e figura incontornável da edição de livros em Portugal, quando percebi que um dos autores disruptivos e fundamentais que o editor introduziu no nosso país foi Marcelo Mirisola. Foi, aliás, o último autor que André Jorge publicou.

Brasileiro, paulistano, com 18 títulos levados à estampa do outro lado do Atlântico, mas com um carimbo de controvérsia incomensurável, foi identificado pela Livros Cotovia como um autor fora de todos os cânones e limites e que, numa das suas obras maiores, Bangalô, ganha uma relevância maior na análise da classe média destituída de valores e referências culturais, produto das indústrias cultural e mediática, da sociedade de consumo e dos ícones publicitários e digitais.

Em Bangalô, surge um narrador amarguradíssimo com a vida, zangado com a sociedade, furioso e distanciado do outro: «Uma vida inteira acreditei nesse treco de “amai-vos uns aos outros”. Não deu em nada. Agora, vou odiar». Há na sua linguagem mercurial uma repugnância tal em relação à classe média: «Eu disse que tô de saco cheio desta gente bem-resolvida e acovardada (da porra da “qualidade de vida” deste lugar), dos cafezinhos com pão de queijo, negócios próprios e velhos hippies de rabo-de-cavalo».

A narrativa surge a partir desse olhar louco, melancólico, que vive parasita às custas da própria mãe, com hábitos enraizados de alcoolismo e desfeito e ressabiado por um relacionamento amoroso que algures no tempo evoluiu mal sucedido. Carregado de preconceitos e de um ódio atroz por todos, faz residir todas as suas críticas nas próprias fantasias e nos devaneios que o atormentam. Num contraponto aceso à sua angústia instalada, porém, o narrador observa não raras vezes barcos, os «barquinhos», perante os quais lhe saem da boca observações politicamente corretas, dirigidas a Frank, artista que lhe alugou o bangalô. Mas as insanidades prevalecem às observações corretas e tranquilas.

A linguagem que Marcelo Mirisola usa é obscena e pode efetivamente deixar incomodados muitos leitores, mas é preciso ir mais longe na leitura e na interpretação da voz colérica do autor. Logo se verá que estamos perante uma obra de referência. Caso contrário, André Jorge não a teria trazido.

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