A pergunta que se faz a ela própria não é «Porquê eu?», mas «Para quê eu?». Coloca a tónica na finalidade. Na missão. Com uma fé de ferro, inquebrantável. Num contraponto a toda a prova com a fragilidade dos seus ossos, como se diz na gíria, de vidro. São algumas das palavras que apresentam Mafalda Ribeiro (MR), que o extraordinário Luís Osório (LO) entrevistou há dias, no seu ciclo de entrevistas “30 portugueses, um país”, que originará em 2019 um livro com o apoio do Hotel Porto Bay Liberdade, do Santander e da Guerra e Paz. LO arrancou rapidamente uma gargalhada à audiência ao partilhar que dissera preliminarmente ao pai de MR: «Bem, se ela não chorou no programa com o Daniel Oliveira, não vai chorar hoje, aqui, comigo». E, de facto, não chorou. Ergueu-se uma fortaleza em torno de todos os temas, mesmo os mais sensíveis e dilacerantes. Com a MR é assim.

OBRIGADO é a palavra favorita do seu dicionário e por isso escrevo-a, aqui, com maiúsculas. Não é para estar na moda. MR refere-se a ela com o maior entusiasmo, a maior devoção. É também no espanto que perde tempo. Melhor: que dedica tempo. Ao encantamento de viver, como se a sua cabeça acompanhasse o seu corpo pequenino de criança. Aquela amabilidade curiosa, aquela curiosidade amável das crianças. MR é pequenina e tão GRANDE. Que apetece, de novo, escrever em maiúsculas, para frisar. Possui, neste momento, 101 fraturas num corpo tão pequenino. Mas desconcertante, pelo humor, a rapidez de raciocínio, a audácia.

«Eu começo a desconstruir logo, a rir-me muito alto…», a propósito da interação com um maquilhador a quem perguntou se queria maquilha-la na sua cadeira de rodas ou se teria de passar para uma outra. Desarmou-o imediatamente. «Esta história da inclusão tem muito que se lhe diga, porque achamos sempre que são os outros que têm de mudar, são os outros que têm de incluir-nos, é o sistema que está mal, os outros é que são os culpados, os outros é que têm a responsabilidade. Mas eu não consigo pensar nos direitos, sem pensar nos deveres. Portanto, na minha condição de pessoa rara e esquisita, tenho de ter a abertura suficiente para ser eu a dar a primeira rodada, sou eu que tenho de fazer alguma coisa, até porque eu não vim, como nenhum de nós, com livro de instruções».

LO foi cirúrgico, como tão bem sabe, na pedra de toque: «Acreditas no ser humano? Achas que o ser humano é tendencialmente bom?». MR disse, perentória: «Cada vez mais. E se formos pensando na evolução, nas coisas sobre as quais nos queixamos. As pessoas acham que quem está numa cadeira de rodas tem de estar só a reivindicar direitos, a apontar dedos e a fazer manifs. É importante lutarmos por todos os direitos que não estão ainda no pleno exercício das suas funções, mas se calhar devíamos falar mais da penalização e do trabalho muito bem feito da nossa Secretária de Estado [da Inclusão das Pessoas com Deficiência], que começou o mandato a dizer que chega de falar, que o país já está sensibilizado e que devemos é começar a agir».

A referência a Ana Sofia Antunes mereceu do LO uma pergunta de seguida: «É um bom sinal político António Costa ter escolhido uma pessoa com deficiência para Secretária de Estado?».  MR realçou: «Nós já nos conhecemos há algum tempo. Ela tem uma luta pela igualdade de direitos muito grande. Ela está lá por mérito. Ele [António Costa] sabe que ela é uma bandeira muito forte. Ela não é só uma pessoa que fala mansinho, é uma mulher que marca pela força da sua palavra».

MR compara-se com a Mafalda do Quino, no seu estilo protestante e contestatário. Não consegue escolher uma canção da vida, mas um estilo de música e uma dança: o samba. Por ser aquele com o qual mais se identifica. Esse perpétuo estar de bem com a vida. Tem uma relação péssima com o silêncio. Está sempre a falar com Deus. O Deus que nunca pôs em causa. Não há vazio na sua vida. Parte-se com facilidade, não anda. Nunca andou. Estudou Jornalismo, era assídua na discoteca Plateau e namorou. Tem uma equipa própria, é muito solicitada para dar conferências motivacionais um pouco por todo o lado. Gosta de ser maquilhada, mimada, é uma apaixonada por pessoas, é uma comunicadora nata. Terá nascido a falar?

LO chegou, concretamente, às palestras de MR: «Tens dito sempre que não falas diretamente só para pessoas com deficiência, falas para todas as pessoas». «Sim, esse é o segredo. Eu descobri há pouco tempo o que era o meu propósito de vida e a chamada missão. Apesar de considerar que as pessoas com deficiência têm algum tipo de admiração por mim e que a responsabilidade é grande, porque sei que sou a voz na comunicação social e nas redes sociais de tanta gente… O que considero mais assertivo é que eu não falo para um segmento de pessoas, aliás, nem sei se isto se segmenta. É um estar disponível para usar a minha vida e o meu testemunho para poder influenciar os outros de alguma forma, trazendo esperança, e poder ser um abanar de consciência…»

«Tu estás muito bem contigo própria e a verdade é que a maior parte das pessoas não está bem consigo própria, independentemente da deficiência. Houve algum momento na tua vida que não tenha sido assim?», indagou LO. «Houve algum turnaround para seres esta mulher que está hoje à minha frente?», reforçou LO. «Sabes, Luís, na resposta a essa pergunta já tenho tido vários jornalistas a não acreditar em mim e a pedir-me no final da entrevista e com o microfone já desligado para eu tirar então a máscara e contar a “verdade”. Isto não é um exercício de fuga, não», alegou MR. «Mas podias, por exemplo, até aos 14 anos…», circunscreveu LO. «Ter tido a idade do armário? Eu cabia numa gaveta, Luís!», lembrou MR no seu sentido de humor mais rápido que a sombra de um corpo pequenino, como o seu. E tantas as gargalhadas, na sala. «É claro que tive os meus momentos. Mas é tudo tão estranho e ao mesmo tempo tão abençoado», lembrou. «Achas que foste escolhida?», elucidou LO. «Completamente. Deus teve aqui um ato de criatividade tal, qual quadro de Picasso, que quando eu saio de mim própria e percebo este meu espanto de viver, como em Tolentino [Mendonça], sinto-me uma criança autêntica (e não por vestir roupa de 8 anos)», fechou MF.

A propósito da perda da mãe, diz que a aproximou mais da humanidade: «A minha mãe era uma extensão de mim, deixou de trabalhar para cuidar de mim». E a frase que lhe mudou a vida surgiu a propósito da morte da mãe, da boca do Rui, da sua equipa e uma espécie de irmão: «Só tens duas hipóteses na tua vida: ou confias, ou confias». «E foi agarrada a essa confiança incondicional e inabalável e sabendo que tudo na minha vida tinha um propósito, que prossegui.»

À nascença, foi condenada ao fim, numa imediata contradição entre o início do fim e o fim do princípio. O seu pai, contra todos os diagnósticos e olhares clínicos reprovadores, acreditou incondicionalmente e com a ousadia dos audazes achou que aquela bebé que havia nascido com a rara doença osteogénese imperfeita (ou a doença dos ossos de vidro), vinda do conforto uterino já com as duas pernas e uma clavícula partidas, era para levar e cuidar.

MR circula numa cadeira elétrica, facto para o qual poderia olhar como uma condenação permanente. Olha antes para este «meio que é a mensagem», na aceção de Marshall McLuhan, como uma outra forma de ver o mundo. Aquele vai-se andando à pergunta recorrente como vai a vida?, é demasiado mórbido para quem como a MR, apesar de não poder ir andando, opta todos os dias por deslizar e ir. Independentemente das circunstâncias.

No final, a extensão da entrevista à audiência foi inaugurada por Tim Vieira, empreendedor de referência com tom de voz pausado e olhar observador, contemplativo e neste contexto previsivelmente emocionado, que MR muito admira. Tim Vieira, que diz «andar para a frente, enquanto a MR roda para a frente», deu continuidade às perguntas de LO, introduzindo esse balancear genial que a MR faz entre o dar e o receber, numa medida evidente a mais para o seu enorme gosto pelo dar. «É uma desproporcionalidade quando nós estamos dispostos a dar».

Ai esta mulher, sem paralelo, bafejada por um milagre que nos redimensiona o nosso próprio lugar e a toda a hora nos soletra Mia Couto na sua apologia da felicidade: «Sou feliz só por preguiça. A infelicidade dá uma trabalheira pior que doença». Obrigada LO.


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