As pessoas grandes, como Clarice, pensam assim: «adoro ouvir coisas que dão a medida de minha ignorância». E é na medida encontrada da sua ignorância que encontro o tamanho da sua sabedoria. A Descoberto do Mundo acompanhou-me ao longo de todo o ano de 2017. São perto de 700 preciosas páginas. Preenchidas pelas mais de 400 crónicas que Clarice, no seu estilo inconfundível e inclassificável, publicou no Jornal do Brasil, entre 1967 e 1973. Surgem pela ordem cronológica que seguiu a sua publicação, permitindo conhecer a evolução do pensamento daquela que é unanimemente reconhecida como uma das melhores escritoras do século XX. Se há quem lhes chame crónicas, há quem se lhes dirija como contos, novelas, pensamentos ou anotações. A verdade é que Clarice não cabe num único género. Porventura, em nenhum. É, simplesmente, Clarice Lispector. A mesma que se queria «anónima e íntima» e sem ídolos. Mas que é hoje de todos. Ela própria um ídolo.

À custa de estar habituada a «não considerar perigoso pensar», Clarice partilhava a cada semana com os leitores do Jornal do Brasil uma manta de retalhos do seu pensamento, desvendando a jornalista, a escritora e, infalivelmente, a mulher e mãe, num registo bastante assíduo de (in)confidências e denunciador da própria privacidade. Com as próprias palavras, assumia: «(…) se escrever sobre o problema da superprodução do café no Brasil terminarei sendo pessoal». Daí a popularidade que as crónicas lhe foram proporcionando, muito mais do que os romances e contos que Monteiro Lobato, Machado de Assis ou Tchecov, que lia, a influenciaram a escrever. Nesta descoberta que conta do mundo, Clarice retrata desde os temas mais domésticos aos mais impactantes e alusivos à governação de um país, com um grande enfoque na importância vital da escrita. Há um cariz ontológico, existencial, filosófico e, até, espiritual em todas as crónicas de Clarice, que acabam por funcionar como uma plataforma de contacto intimista com a autora que se propõe, como este título sugere, olhar para as coisas com o olhar da primeira vez, de quem descobre.

Um «(…) sinal de se estar em caminho certo é o de não ficar aflita por não entender; a atitude deve ser: não se perde por esperar, não se perde por não entender». Para Clarice, aliás, «entender é a prova do erro». Noutra passagem, avança: «Tantos querem a projeção. Sem saber como esta limita a vida». Refere, no meio de outras tantas divagações, que me transportam tantas vezes para Bernardo Soares, no seu Livro do Desassossego. «Deus sabe o que faz: acho que está certo o estado de graça não nos ser dado frequentemente. Se fosse, talvez passássemos definitivamente para o outro lado da vida, que também é real mas ninguém nos entenderia jamais. Perderíamos a linguagem em comum».

A Clarice que nos diz que «escrever é um divinizador do ser humano» vai mais longe e fala nas razões pelas quais considera ter nascido: «Nasci para amar os outros, nasci para escrever, e nasci para criar meus filhos». «Amar os outros é a única salvação individual que conheço (…)». A propósito da escrita diz ser a palavra o seu «domínio sobre o mundo». Relativamente aos filhos, refere com a maior das assertividades que quis ser mãe, salientando a maternidade como um dos eixos fundamentais da sua vida. Com a mesma determinação aborda a dimensão da inteligência, achando-se muito mais proprietária de «sensibilidade inteligente» do que de inteligência e defendendo essa qualidade como muito mais importante para captar a atmosfera de cada circunstância: «(…) este tipo de sensibilidade, uma que não só se comove como por assim dizer pensa sem ser com a cabeça, suponho que seja um dom». E, por isso, Clarice não se considerava intelectual, por achar que usava mais a intuição e o instinto e menos a cabeça. «Não posso escrever enquanto estou ansiosa ou espero soluções a problemas porque nessas situações faço tudo para que as horas passem – e escrever, pelo contrário, aprofunda e alarga o tempo». Eis a formulação de Clarice que nos transfere para uma perceção consciente, numa reflexão sempre a partir da escrita, do “tamanho” do tempo e do seu reflexo nas várias dimensões da sua vida.

Clarice é um sinónimo permanente da disponibilidade para perguntar, para auscultar, para descobrir, no sentido que A Descoberta do Mundo evidencia. As grandes perguntas que faz parecem ser, como ela própria assume, maiores do que ela: «quem sou eu? como sou? o que ser? quem sou realmente? E eu sou?». «”Se eu fosse eu” parece representar o nosso maior perigo de viver». Prossegue Clarice. A Clarice que se confronta com estas questões essenciais compreende o rasgo, a dimensão, a grandiosidade do seu desígnio (ou, afinal, do da humanidade inteira): «A missão não é leve: cada homem é responsável pelo mundo inteiro». E, nessa linha, diz-se uma pessoa muito ocupada, porque toma conta do mundo.

Clarice deixa-nos ainda uma separação essencial entre a vocação – ser-se chamado para algo – e o talento – saber como ir, conhecer o caminho para… A mesma Clarice que defende: «Esperar que algo amadureça é uma experiência sem par». Mas a grande genialidade, essa situa-a na esfera do bem: «(…) o gênio do ser humano está na bondade». Entre a ironia, o drama, o apelo à verdade mais íntima, o respirar e o fôlego da exposição dada à intimidade do seu pensamento, Clarice mantém-se misteriosa, aquela que se diz tão misteriosa que não se entende.

A nossa própria vida altera-se, profundamente, quando lemos Clarice pela primeira vez. Nesse momento inaugural, fazemos nós a descoberta do mundo.

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