Já aqui falei de um livro de José Tolentino Mendonça, O Hipopótamo de Deus e, ainda no rescaldo desta Páscoa, volto ao padre, poeta e original autor que tanto me tem ensinado e inspirado sobre o lugar da espiritualidade. Especialista que é nos textos bíblicos, Tolentino Mendonça lança uma série de chaves para a interpretação da mensagem cristã, recorrendo pelo meio a referências fundamentais da literatura. É o que faz de forma exímia no seu livro Pai-Nosso que estais na Terra, o qual materializa um guia dirigido a crentes e não crentes para compreender aquela que é a oração cristã nevrálgica.

A força deste livro de Tolentino Mendonça começa desde logo na mensagem de esperança implícita à sua primeira frase: «A primavera está por toda a parte». Mas há certamente um trabalho de pesquisa espiritual e de crescimento interior ao qual temos de dedicar-nos com seriedade e autenticidade para lá chegar. Há aqui um apelo à condição peregrinante do homem: «Não nos escutarmos, até ao fim, é desperdiçar uma preciosa ocasião para aceder àquela profundidade que pode devolver sentido à existência». Para tal, é necessário ter disponibilidade para escutar e acolher. Ora, Tolentino Mendonça recorda que é através da oração que melhor podemos colocar em prática a real vocação da linguagem: a relação entre as pessoas. Através da relação, por sua vez, é possível exercitar como de nenhum outro modo a capacidade de escutar e acolher.

Tolentino Mendonça avança e diz que para descortinarmos o verdadeiro sentido do Pai-nosso temos de interiorizar o significado desse «Pai»: «Uma espécie de representação psíquica, que nos oferece um modelo para cimentar a arquitetura interior. Na verdade, para crescermos, para ganharmos a indispensável confiança, tivemos todos a necessidade de ter o nosso pai dentro de nós, não apenas fora». É esta consciência que torna incontornável e extraordinária a oração do Pai-nosso. É neste ponto que subimos o degrau e passamos de uma espiritualidade exterior para uma outra interior, mais madura, com um eixo estratégico: «(…) a nossa arquitetura interior tem em Deus a grande referência». E com este enquadramento, o autor desdobra a oração:    

Pai-nosso – Tolentino Mendonça recorre a Santo Agostinho para descrever as primeiras palavras do Pai-nosso: «Jesus quis que chamássemos nosso Pai ao seu próprio Pai». Uma consequência pascal, esta oração é comunitária, pública e, desse ponto de vista, apela a que se reze por todo o povo e não apenas a título individual.

Que estais nos céus – Entrar na densidade espiritual do Pai-nosso pressupõe, seguindo o autor, descobrir o Deus que está, que está ao nosso alcance, aqui e agora. Trata-se, desse modo, de um Deus que apela a saber estar. Saber estar implica ter tempo, dedicar tempo. Tolentino Mendonça recorda, recorrendo ao Principezinho, que o que tornou a rosa tão importante foi o tempo que se perdeu com ela.

Santificado seja o vosso nome – O autor, neste ponto, realça que «(…) a santidade é a vocação mais inclusiva e comum», sendo no entanto necessário acertar os ponteiros e saber em que momento é que a santidade entra nas nossas vidas. E esse momento surge repetidamente todos os dias. De acordo com Tolentino Mendonça, a santidade «(…) expressa-se no pequeno, no quotidiano, no usual».

Venha a nós o vosso reino – Aqui a mensagem é a de que Deus já está entre nós. «E o que precisamos é de nos tornar sensíveis a essa presença». Há que acolher essa semente no dia a dia e, com espírito peregrinante, aderir com um sim declarado à busca interior que dá sentido à vida.

Seja feita a vossa vontade assim na terra como no céu – Neste momento da oração, fica implícita a medida da entrega a Deus: «A medida do amor é dar-se sem medida. É um contrassenso pensar que o amor tem um horário, um turno, um guiché. Quem ama vive na atenção solícita, tem antenas, sensores, olhos que não se habituam nem conformam ao desamor». Tolentino Mendonça vai mais longe e recupera uma citação de Fernando Pessoa: «triste de quem está contente».

O pão nosso de cada dia nos dai hoje – Ter todos os dias acesso ao pão é viver todos os dias com Jesus. E isso pressupõe uma enorme liberdade em relação às coisas materiais. O autor avança com uma passagem essencial no livro: «Quando caminhamos, não podemos ir com demasiados pesos, senão não chegamos longe. O viajante ou o peregrino têm de aceitar fazer a experiência de viver daquilo que é de cada dia. Isto é que é viver de Deus».  

Perdoai-nos as nossas ofensas – A principal mensagem a reter aqui é a de que esta oração é a escola do perdão, por excelência, com alguns pressupostos fundamentais que Tolentino Mendonça enfatiza: «Deus não salva o que parecemos ser, o que fingimos ser: Deus salva aquilo que somos, porque é nisso que Ele acredita, porque é isso que Ele ama».

Assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido – Para conseguir perdoar na verdadeira aceção da palavra, é necessário abrir a relação que temos com o outro a uma terceira pessoa: Deus. «O perdão não é uma coisa que eu crio em mim. É uma coisa que eu deixo Deus fazer em mim. Deixar que Deus venha à minha história e que a sua lógica se faça minha».

E não nos deixeis cair em tentação – Aqui, mais uma vez, fica realçada a ideia de que só a relação com Deus permite evitar que se caia em tentação: «Jesus não caiu em tentação porque tinha, de facto, uma densidade de relação com o Pai». Tolentino Mendonça destaca, ainda assim, três tentações que sempre rodearam Jesus e que descrevem no fundo as que nos rodeiam a todos: o materialismo, o alienar das nossas responsabilidades e o poder.  

Mas livrai-nos do mal – O Pai que nos livra do mal é o Pai perante o qual somos sempre postos nesta oração, o Pai que ajuda a distinguir o bem do mal, no pressuposto de que entre ambos a diferença pode ser tão ínfima como uma «gota de chuva a cair no mar».

Longe de ser uma prece intimista e individual, o Pai-nosso encerra, assim, um compromisso com a comunidade, prevendo o envolvimento e o empenhamento num projeto comum e maior que cada um de nós.


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