«Mas sobretudo donde vem essa certeza de estar vivendo?». É uma pergunta, claro. O mesmo não é dizer (é muito mais relevante assim) que se trata de uma pergunta de Clarice, levantada no seu primeiro romance, Perto do Coração Selvagem (1943). É uma pergunta, ao lado de tantas outras, que Clarice coloca com apenas 23 anos, a idade que tinha quando publicou este seu primeiro livro. Clarice marca, desde logo nesta publicação, o tom que viria a definir, mais do que a sua escrita, o seu próprio pensamento. Um registo de inquietação, de curiosidade, de transformação interior, de questionamento permanente, ancorado numa escrita fragmentária, como em Virginia Woolf. Distingue-se totalmente do então universo literário brasileiro, desencadeando uma mudança de paradigma. Assume um lugar novo, nunca visto, com um quadro ficcional diferente de todas as tendências dominantes à época. É um momento inaugural que surge na literatura brasileira.

Perto do Coração Selvagem apropria-se de aspetos prosaicos e aparentemente anódinos para concretizar uma profunda experiência de introspeção através da qual se faz um diálogo com o mundo. Joana, a personagem principal, órfã de pai e mãe, encarna essa reflexão interior cruzando reminiscências do passado e referências à realidade presente, consagrando paulatinamente, entre gozo e ironia, uma apologia sobre a linha do tempo: «O dia tinha sido igual aos outros e talvez daí viesse o acúmulo de vida». «Analisar instante por instante, perceber o núcleo de cada coisa feita de tempo ou de espaço». Clarice envolve-nos, frase após frase, com divagações que interpelam o leitor como uma flecha. Sem rodeios. E constrói, deste modo, uma narrativa mais focada na arte de narrar e menos na narrativa propriamente dita. Importa muito mais o como se narra do que o que se narra.

Como de resto vem a acontecer mais tarde e com maior intensidade com A paixão segundo G.H., em Perto do Coração Selvagem somos colocados perante a evidência de uma conflitualidade interior materializada na protagonista, Joana. «Mal posso acreditar que tenha limites, que sou recortada e definida». Da sua boca, podemos também ouvir decalcados sentimentos. «Essa tristeza leve é a constatação de viver. Como não se sabe de que modo usar esse conhecimento súbito, vem a tristeza». E, para além de um desconhecimento de si ou de um contraponto consigo, Joana especula sobre as suas ambições: «O que desejo ainda não tem nome».

Com um acolhimento muito favorável entre leitores e críticos literários, Perto do Coração Selvagem mereceu inclusive um importante reconhecimento atribuído a obras de estreia, o prémio Graça Aranha. De acordo com Carlos Mendes de Sousa, dos maiores especialistas de Clarice, investigador da Universidade do Minho, «(…) a literatura de Clarice implica a exclusão de qualquer tipo de hierarquizações e propõe a instauração de um espaço de errância: não ser de nenhum lugar ou amplamente existir numa gravitação que é todos os lugares». Clarice está numa «linha de fronteira», para recorrer de novo a Mendes de Sousa.

Em Perto do Coração Selvagem, Clarice esboça um «contorno à espera da essência», numa apetência, não negociável, para os limites, dado que a sua personagem principal nascera «para o essencial, para viver ou morrer». E é nessa fronteira permanente com o que está do lado de cá ou no de lá que Clarice chama a «perfeição de Deus» para a situar «mais na impossibilidade do milagre do que na sua possibilidade». Resta-nos o espanto, o assombro, sobre como Clarice, apenas a partir da sua juventude, acomodou num romance inaugural a maturidade de uma vida inteira. Clarice é um milagre.

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