No passado 28 de janeiro, fui ler no Chiado. Melhor dizendo, fui à Bertrand do Chiado assistir à Ler no Chiado, uma iniciativa mensal da revista Ler e da Bertrand, com coordenação de Anabela Mota Ribeiro, uma das entrevistadoras que sigo desde sempre. Neste dia, para uma conversa com Valter Hugo Mãe, escritor português que publicou recentemente Homens imprudentemente poéticos, Maria Ribeiro, atriz e realizadora brasileira, e Ana Kiffer, professora de literatura da PUC-Rio. Esta fantástica ponte atlântica Lisboa-Rio de Janeiro fez-se de revelações literárias, desabafos inesperados, comentários intimistas.

Valter Hugo Mãe, cujos livros continuam na minha estante à espera do meu timing (aquele ímpeto que nos diz: agora vou ler este autor), não falou sobre a polémica que retrata um dos seus títulos desadequadamente integrado no Plano Nacional de Leitura (a conversa desvalorizou esse tipo de registos), embora o autor tenha enfatizado neste lugar de conversa que na Internet correm chorrilhos de maus conteúdos. Mas falou-se de literatura, claro. Disse de caras que não acredita na literatura que fala de si. «Se a oração, em vez de ser uma celebração da vida e do homem, falar sobre religião, perde o seu real propósito. E com a literatura é igual», disse.

Num tom mais intimista e coloquial, com a espontaneidade de quem fala olhos nos olhos com um amigo de infância, Maria Ribeiro, autora do livro já publicado em Portugal Trinta e Oito e Meio, começou por revelar que só sabe falar de si. Mas, falando de si, assume não raras vezes o tom pejorativo num estilo de defesa puro e assumido. Não é de espantar que tenha dado a descobrir nesta conversa que se começou a usar óculos foi para parecer menos atriz e mais escritora. No mesmo jeito confessional e jocoso, contou que faz psicanálise há 20 anos, duas vezes por semana, reforçando com tom de voz mais alto ainda que não pretende ter alta. Valter Hugo Mãe meteu-se com Maria Ribeiro e disse: «Isso é amizade paga!». A verdade é que, segundo o escritor e também ator brasileiro Gregorio Duvivier, Maria Ribeiro «escreve como conversa e conversa como ninguém». Pude atestar.

No seu livro Trinta e Oito e Meio, que comprei de imediato e li num ápice, percebe-se a voracidade com que sabe escrever – igual, de facto, àquela que usa para falar –, demonstrando uma energia tal, como se em cada uma das suas palavras estivesse escondido um desígnio para começar tudo de novo, como boneca-russa. A cada texto. A cada crónica. Pena em Portugal não se verificar uma valorização tão expressiva do género crónica. Valter Hugo Mãe lembrou, inclusive, que no Brasil existe uma cultura do texto breve, um descomplexo do texto curto que não há em Portugal. Aliás ficou a referência também feita na conversa entre os três artistas e a moderadora ao belíssimo escritor brasileiro Graciliano Ramos, uma inspiração para Ana Kiffer e especialista do texto curto, da crónica, do conto. Lá está.

Ana Kiffer, com doutoramento sobre Antonin Artaud, escritor e dramaturgo francês (1896-1948), falou num brasileiro mais institucional mas ao mesmo tempo melodioso, poético, conhecedor de cada palavra. Lembrou que «vivemos num mundo com um mecanismo de sucesso que é insuportável e é por isso que é tão difícil abrir os nossos cadernos, os nossos desabafos mais íntimos». Valter Hugo Mãe foi agarrado nesta deixa do sucesso para contar que também «o sucesso leva a que as pessoas nos desentendam». Disse, até: «tenho perdido muitos amigos e esse é um dos dramas da minha contemporaneidade». E esse local tão profundo e intrínseco onde ficam as inquietações mais nobres e íntimas cruza-se com os cadernos de Ana Kiffer, o seu arquivo mais interessante, adepto da rasura, do contacto com o corpo, do transbordamento. Já para Valter Hugo Mãe, os cadernos são ferramentas clínicas e cirúrgicas, para apontamentos sucintos, talvez até para garantir uma capacidade valorizada pelo autor de distanciamento sobre as coisas que pensa, diz e escreve. Como deve acontecer com a cultura. Para Valter Hugo Mãe, «a cultura começa no afastamento, naquele timing em que ganhamos distanciamento sobre o que vivemos». E talvez seja nessa ótica, nessa abordagem distanciada que Ana Kiffer faz a apologia do seu querido Antonin Artaud, doutor da cultura indígena e, por essa via, nessa raiz, proprietário de uma visão de reconstrução da humanidade (e não de desconstrução). Não chegou à segunda metade do século XX, mas continua a deixar-nos desafios neste mundo contemporâneo, diz Ana Kiffer. Como, de resto, estas conversas.

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