A angolana Djaimilia Pereira de Almeida assina um dos livros mais bonitos que li nestes últimos tempos: A Visão das Plantas. Não tanto pelo argumento, mas pelo estilo, a forma de contar e de unir as palavras. É a história de um «capitão velho, retornado à casa de família desagravado para morrer em descanso». Se quisermos uma única ideia, é «um homem atrapalhado com os preparativos do seu enterro».

De nome Celestino, um capitão com passado duvidoso, carregado de cadastro, a contas com o mar onde se fez pirata, regressa envelhecido e cego à vila que o tinha visto partir, instalando agora um medo reverencial entre os locais de todas as idades e emprestando à sua casa «contornos de morada assombrada». Uma casa, agora intacta, assolada pela penumbra, com mobília que «não saudou o seu regresso» e o ranger do chão a falar-lhe aos ouvidos macambúzios de solidão, apesar de tudo, desejada, «música para os seus ouvidos».

Lá fora, no jardim da casa, porém, um império de flores faz as delícias da sua respiração a braços com os dias contados até ao ínfimo final. «Cheirara o mundo, mas agora estava habituado ao perfume das flores». Entram pela porta dentro um médico, uma menina holandesa, uma velha negra e escrava e um padre. Mas é com as flores que se redime e expia face a um passado saturado de atos fatais. É a visão das plantas que lhe traça o perfil perdoado, até porque, afinal de contas, «a Celestino o mar nunca trouxera a vida». Terá sido com as suas flores, que sabia tratar como ninguém, que se ocupou a realizar-se. Até «talvez tivesse um coração escondido atrás das tatuagens».

Uma passagem de Os Pescadores, de Raul Brandão, serviu de inspiração à autora angolana. Escrito como uma peça de tecelagem, com todas as palavras rendilhadas, feitas de filigrana, perfeitamente encaixadas umas nas outras, entrecortadas no fim da anterior e no início da seguinte. Registo denso, mas fluído, cuidado, mas envolvente.

Mesmo com um incentivo a confessar-se na sua proximidade ao fim, o capitão evidenciou-se incólume, distanciado de culpas. E foi assim que partiu, na sua condição de cego (não de ceguinho). De facto, a este capitão «a vida não lhe dera a nobreza de morrer em novo». Querendo, a morte «tem toda a paciência do mundo». E acontece que para o seu fim teria de chegar ainda a visão das plantas, que o certificou, apesar do que ficou no mar alto, «sem uma dúvida na consciência tranquila».

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