O jornalista e, agora, (muito mais) escritor, Luís Osório, desafiou-me há tempos para selecionar uma canção, um livro, um filme, um poema e uma série de TV, a divulgar na sua página, na qual publica as suas coisas e as de outros numa atitude de cidadania ativa. Bastante surpreendida com o desafio, lá lhe enviei as minhas 5 escolhas, que talvez até ganhem maior relevância neste tempo tão corrido em que, à força, teremos de (re)aprender a parar.


Canção: Pasión, de Rodrigo Leão e Celina da Piedade

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Carregada de força. Rasgo. Tango. Com a voz calorosa de Celina da Piedade e a construção musical do inconfundível Rodrigo Leão.


Livro: A Paixão segundo G.H., de Clarice Lispector

Da incontornável, inclassificável Clarice Lispector, este livro retrata uma mulher bem-sucedida profissionalmente que se lança na procura existencial da própria identidade, que as iniciais do seu nome – G.H. – não só não deixam antever, como podem referir-se a um qualquer outro ser. Sem critério. A narrativa é anódina: depois de demitir uma empregada doméstica interna, G.H. entra no quarto que a aquela ocupava para iniciar uma limpeza de fundo e defronta-se com uma barata, que acaba por esmagar e… comer. Surpreendentemente, aí encontra uma razão de viver. Clarice Lispector transforma esta trama narrativa simples e aparentemente pobre numa profundíssima reflexão existencial, inspirada no existencialismo de Jean-Paul Sartre. Eis que, no quarto que a sua anterior empregada doméstica ocupava, surge o ímpeto para um reencontro consigo mesma: «Não ter naquele dia nenhuma empregada, iria me dar o tipo de atividade que eu queria: o de arrumar. Sempre gostei de arrumar. Suponho que esta seja a minha única vocação verdadeira. Ordenando as coisas, eu crio e entendo ao mesmo tempo». Encontra a melhor forma para as coisas, mas rapidamente, porém, percebe que ali afinal nada há para arrumar e, nessa desilusão, dá-se então o encontro com a barata indesejada, que a leva a uma inopinada reflexão, inundada de pensamentos introspetivos – duros, muito duros – sobre a existência e o seu significado. Ao enfrentar e comer a barata, reencontra-se nesse ato inofensivo e simplório consigo mesma, redescobrindo-se. Este processo (kafkiano) vai-se desdobrando à medida que Clarice Lispector coloca na boca da sua personagem pensamentos reveladores, de novo, de estabilidade, segurança, convicção e bravura: «Eu sou mansa mas minha função de viver é feroz». A Paixão segundo G.H. é uma criação inquietante, uma busca interior desconcertante e uma investigação à identidade e à alma, metaforizadas na arrumação de um quarto onde a personagem se esbate num vazio incomensurável e na tomada de consciência da fragilidade humana. Este livro de Clarice Lispector, de 1964, consiste num tratado sobre a condição humana. Numa analogia, se quisermos, da paixão de Cristo. É essencial.

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Filme: Hannah Arendt

O filme que retrata a mulher com o mesmo nome: Hannah Arendt (1906-1975). Filósofa, jornalista judia, exilada nos EUA em plena Segunda Grande Guerra. Acabou por ganhar cidadania norte-americana e lançar As Origens do Totalitarismo, prestigiada publicação entre intelectuais. No filme, é focada a deslocação de Hannah Arendt a Jerusalém, em 1961, para cobrir o julgamento do criminoso de guerra nazi Adolf Eichmann para a revista “The New Yorker”. O artigo daí originado tem um impacto mediático incalculável, pela sua enorme controvérsia e por evidenciar aquilo que ficou carimbado com o epíteto de “a banalidade do mal” e em relação ao qual Hannah Arendt saiu em sua própria defesa com o argumento: «tentar compreender não é perdoar». Hannah Arendt ganhou, por fim, o respeito dos pensadores do Holocausto. O filme, em bom rigor, é o retrato de um génio (não compreendido), de alguém que ousou refletir o Holocausto de forma absolutamente inovadora. De alguém que, mesmo debaixo da pressão da crítica, se manteve fiel às convicções. Sem desvio.

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Poema: José Tolentino Mendonça | O último dia do verão (in Ao Porto, Coletânea de Poesia sobre o Porto, Adosinda Providência Torgal e Madalena Torgal Ferreira, Publicações D. Quixote)

Pois às vezes me falta a quem contar

certo dia passado do princípio ao fim

o encanto que tenha realmente

a insistência do vento ao longo da Foz

aquilo que daria (e eu daria tudo) por compaixão

Nascemos e vivemos só algum tempo

não temos nada

não podemos mesmo na penumbra

decidir a atenção ou o esquecimento

as forças soçobram como vagos motivos

em público

e em qualquer lugar

Por isso sei tão bem o valor

da natureza indiscutível dos teus olhos

onde a luz anota seus aspectos

teus olhos impacientes e irrealizáveis

que me acompanham

agora que sozinho danço

pela cidade vazia

[É o poema que diz tudo. Sobre o que verdadeiramente conta. E o que conta menos mas pensamos que conta mais. Ou o que conta mais, ainda que achemos que conta menos. Sobre o efémero, o superficial e o holofote versus a longevidade do tempo, a densidade e a luz. Do poeta, também cardeal, que possui possivelmente a voz mais original deste nosso tempo.]

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Série de TV: Borgen

A série de TV que desafiou hábitos de consumo de TV, (re)agarrando ao ecrã. Um retrato da constituição de um governo de coligação na Dinamarca (“borgen” é o termo prosaico, usado na gíria política e jornalística dinamarquesas, como referência ao parlamento) e as idiossincrasias e vicissitudes, os desafios e contextos do exercício do poder, na sua (sempre relativa) diversidade. E da sua relação com os media, com a complexidade inerente e prevista (nem sempre previsível) entre os dois mundos. Uma primeira-ministra, Nyborg, a personalizar a antítese do poder pelo poder. A injetar na (luta) política os ideais em que acredita e nos quais se revê, os valores que preconiza, a visão que antecipa para o país. De forma quase ingénua, o seu próprio sonho. Sempre na hercúlea tarefa de conciliação com a “vida normal”, familiar e pessoal.

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