No livro Alguém falou sobre nós, com o título secundário “Ensaios sobre o mundo atual à luz da sabedoria da Antiguidade Clássica”, a escritora espanhola Irene Vallejo constrói um profundo mosaico de reflexões, no qual o passado clássico se entrelaça com o presente, como se os séculos fossem apenas uma pausa entre conversas. Com uma escrita escorreita, a autora – reconhecida pelo célebre O Infinito num Junco, já aqui retratado – oferece uma coletânea de crónicas inicialmente publicadas no “Heraldo de Aragón” e neste livro coligidas para uma experiência integrada da sua visão-homenagem sobre o impacto, em ciclo contínuo, da Antiguidade em todos os homens, de todas as épocas.
Vallejo consolida-se como humanista incorrigível e junta a formação em Filologia Clássica à tarimba dos livros icónicos que já publicou, conferindo também nestas crónicas reunidas o tom de autoridade para falar, com erudição, a um mundo «incerto, confuso e labiríntico». Cada crónica surge como um gesto de proximidade, uma tentativa de abrir as portas da memória clássica a leitores do presente, sem condescendências nem simplificação.
Para o fazer, Vallejo convoca autores como Sócrates, Aristóteles, Horácio, Homero, Plínio ou Pascal, com a leveza de quem conversa, não de quem prega, para provocar esta «sociedade narcisista e impaciente do eu e do já». Evoca termos como a escola, o maniqueísmo, a felicidade, a inveja, a sabedoria, a demagogia, a democracia, a ambição, o sucesso ou o amor, mas também o «efeito Google» e as redes sociais. E eis que nos leva pelo fio condutor dessa dança entre o passado e o presente, encontrando uma moldura para enquadrar na atualidade as mais intemporais referências históricas e culturais.
Recorda-nos a propósito do papel tão transformador das histórias, que a «semente dos acordos precisa do terreno fértil da conversa». Mas relativamente à importância dos consensos, frisa que «todos elogiam os pactos, mas ninguém quer reconhecer que cede». E ainda sobre as histórias, remete-nos para o valor dos livros, sempre os livros, lembrando que na nossa experiência de leitores ganhamos vida(s) e que, «muitas vezes, para obtermos o melhor de nós próprios, precisamos de ser outros».
Alguém falou sobre nós cumpre a missão de reposicionar a cultura clássica pela sua intemporalidade e transversalidade. Na contemporaneidade, continuamos a enfrentar as grandes questões humanas, de que todos somos feitos e que nos definem como protagonistas da história individual e coletiva, já que como recorda a autora aquilo que é inconfundivelmente comum é o facto de cada um ser único: «somos todos únicos, e é precisamente isso que temos em comum».
Este livro de Vallejo é, acima de tudo, um tributo à memória cultural partilhada, que nos recorda, com elegância, que pensar continua a ser um dos atos mais revolucionários que podemos praticar e que a «saúde de uma sociedade pode diagnosticar-se auscultando as suas palavras». Saibamos usá-las para o bem, que não nos fará mal.
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