Li pela primeira vez Mario Vargas Llosa, Prémio Nobel da Literatura, em 2016. Já aqui falei d’ A Civilização do Espetáculo, que faz uma radiografia duríssima sobre a cultura, e venho hoje deixar impressões sobre o romance Cinco Esquinas, que recria os piores anos do regime autoritário de Alberto Fujimori (1990-2000), lembrando que as situações limite, como as ditaduras, aguçam nos homens os seus piores instintos…

É com este argumento que o autor dá o pontapé de saída para a narrativa, com epicentro em duas mulheres, Chabela e Marisa, que pernoitam juntas, despreocupadas da hora de recolher obrigatório típicas da ditadura. Logo se desencadeia uma teia fatídica que ameaça escarrapachar a vida privada nas parangonas dos jornais, com manobras de bastidores ao serviço de interesses políticos. Com a nota de que Chabela é mulher de um conceituado e mediático advogado e Marisa de uma das figuras de proa da exploração mineira.

O mundo perfeito em que sempre viveram, ameaçado é certo pelas investidas de guerrilheiros e sequestros, é de rompante amaldiçoado por um escândalo com contornos rebuscados e com destino direto nas páginas do pasquim Destapes, cuja rotina e método surgem a materializar uma sociedade do espetáculo em ascensão e onde o pensamento e a cultura têm uma fraquíssima importância. «A curiosidade mórbida é o vício mais universal que existe», coloca Vargas Llosa na boca de um personagem, traduzindo a generalidade e a amplitude da tendência para a bisbilhotice atroz, sem dó pelos envolvidos nem piedade ou consciência das repercussões, no limite, na sociedade global (que, à partida, devia importar a todos os que a formam). São, como diz o autor, os tais «cães de fila jornalísticos».

Numa profundíssima crítica à produção televisiva daquela época do Peru, o autor recria uma outra figura que, apesar da sua carreira em tempos estabelecida e do seu nível cultural, dobra-se numa oportunidade na TV à banalidade dos conteúdos para audiência ver. Vargas Llosa coloca, aliás, a própria questão em evidência: «Como podia um senhor como este, advogado, que se vestia tão bem e era tão amável e bem-falante com toda a gente, escrever aqueles guiões tão vulgares e ridículos, tão excessivos, de mau gosto e estúpidos? A explicação era que aquilo agradava às pessoas: os ratings do programa batiam recordes e encabeçavam as sondagens desde a sua criação».

Em Cinco Esquinas, ficam destapadas as várias relações que por norma os bastidores escamoteiam entre os poderes económico, político e mediático. Esta manobra revelou-se ser uma emboscada criada a um homem de poder para materializar a capacidade de a imprensa de escândalos atuar sem quaisquer limites, em sucessivos atos intrusivos na vida privada alheia. Mas este movimento também vem mostrar uma impressionante disponibilidade do jornalismo para se vender sem medida a troco de ascensão mediática e de viabilidade financeira. E, por detrás deste emaranhado já suficientemente complexo, surge no romance um tal Doutor a encapotar a verdadeira identidade do poder e, realce-se, do poder em ditadura.

Esta obra de Llosa, que rouba o título a um bairro antigo de Lima, confirma uma vez mais o belíssimo escritor: no seu estilo corrido, muito cinematográfico e, de rompante com afirmações literárias inesperadas, a entrelaçar histórias e intervenções de personagens, o autor peruano mostra-se magnânimo no seu diálogo com a literatura. E com a capacidade a que sempre nos habitua de trazer, mesmo que com temas antigos, as grandes preocupações que continuam a assolar a atualidade.

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