Princípio de Karenina, última publicação do escritor português Afonso Cruz, consiste numa provocação declarada a Tolstoi. Mas já lá vamos. Para o escrever, Afonso Cruz aceitou fazer uma viagem ao Vietname e ao Camboja, sob a chancela do Centro Nacional de Cultura. Com o objetivo de «encontrar vestígios de nós próprios pelo mundo, em lugares tão distantes como a Cochinchina (que titulava a viagem) e, porventura, encontrar essas mesmas geografias dentro de nós», desta viagem resulta um Princípio de Karenina a precipitar para um tal de «estrangeiro» tudo o que fica fora do local de conforto. Depois do medo. «Uma boa parte da Humanidade pode ser definida pela doença do meu pai, pelo medo.»

Com ironia apurada, Afonso Cruz dá protagonismo a uma figura masculina, com deficiência numa das suas articulações a ditar-lhe o azar e a sorte, a imperfeição e a perfeição, o destino e a autodeterminação. Esse ser pardacento (numa afronta ao preto e branco do pai) celebra casamento com a Fernanda da farmácia, supostamente inalcançável para ele. Também mais apetecível. No primeiro beijo trocado entre ambos, ele fica a saber que ela não é boa rês, mas mantém-se, firme. A determinada altura, em busca de melhor detalhe para os trabalhos domésticos, substitui a criada da Mealhada e é pela nova empregada que se apaixona e a quem dá um beijo, sentido. Numa incorrigível falta de coragem para terminar terminantemente o seu casamento, conserva ambas as relações. Salva-se para a sua coragem o momento em que descobre grávida, a amante. A mesma que emigra para um estrangeiro longínquo. Nos antípodas. Não vai a tempo de ser verdadeiro, porque a vida o surpreende. Até à última página, porém, a interlocutora desta figura principal é a sua filha, com quem se cruza. Ou não. E é num livro de contabilidade, onde anota frases e pensamentos que deseja cristalizar, que se vai revelando.

Princípio de Karenina parte do princípio advogado por Tolstoi em Anna Karenina: «Todas as famílias felizes se parecem, todas as infelizes são infelizes à sua maneira». Afonso Cruz confronta, todavia, a formulação do escritor russo e defende não ser possível existir «felicidade na igualdade e na monotonia». «A vida é um desequilíbrio e, sem essa instabilidade e assimetria, teríamos apenas um vazio de pedra». O vazio de pedra que não quis herdar do legado familiar. Nem do pai, que o mantinha numa redoma, entre muros. Nem da mãe, que o endeusava por uma deficiência congénita.

Afonso Cruz, já aqui entrevistado (2015), é uma das vozes mais originais da literatura portuguesa. Para além de escritor, o multifacetado Afonso Cruz é ilustrador, cineasta, músico e produtor da cerveja que consome. Com as mãos na massa, vive num monte alentejano, longe do bulício urbano. Mas com os olhos postos no mundo. Na sua visão plural, com milhas acumuladas em todos os continentes, permite-nos entrar no universo da viagem, para lá do longe, do desconhecido, dos próprios muros. E, para lá do longe, o Princípio de Karenina promove um encontro, porventura, connosco próprios. Uma oportunidade para nos vermos e estatelarmos com o que somos, o que erramos, o que tememos e, quem sabe, ainda assim, com o que nos faz feliz (apesar de tudo). E apesar de Tolstoi.

 

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