Desde A Amiga Genial, o primeiro volume da sua tetralogia mundialmente disseminada, que o nome desta autora vai entrando no ouvido e ficando, como um mantra. Tenho vindo a oferecer, inclusive, os quatro livros, um a um, a uma (minha) amiga genial. Mas, por um motivo ou outro, tem ficado na fila das minhas opções programadas, e também das inopinadas, de leitura. Uma outra amiga, porém, enviou-me há dias uma passagem do livro que acaba de ser editado em Portugal, A Invenção Ocasional, reunindo as 51 crónicas publicadas por Elena Ferrante, entre janeiro de 2018 e janeiro de 2019, no The Guardian. Não resisti ao cirúrgico parágrafo que me chegou e A Invenção Ocasional integrou a bagagem essencial das minhas férias.

Com o anonimato e a reserva aos quais pretende votar-se, Elena Ferrante empreende desde logo um movimento a contraciclo nesta cultura contemporânea que efabula e endeusa, para além das personagens, os seus autores. E eis que os olhos, quando controlada a curiosidade sobre a sua identidade por detrás do pseudónimo, ficam postos só e só mesmo na sua obra. Numa centralidade detida sobre o que verdadeiramente importa. E a verdade é que, ao ler o registo intimista das crónicas que folheamos na coletânea A Invenção Ocasional, não só não importa conhecer a identidade de Elena Ferrante que se apresenta acessória, como de repente, página após página, parece até que a conhecemos já mais do que o suficiente.

Elena Ferrante ficou muito «lisonjeada» ao ser desafiada pelo The Guardian a publicar semanalmente. E «assustada». «Despois de muitas hesitações, fiz saber à redação que aceitaria a proposta se me fosse enviada uma série de perguntas, a cada uma das quais, por sua vez, eu responderia respeitando os limites do espaço que me fosse fixado.» Foi, assim, surgindo o fio condutor temático para as «invenções ocasionais» que deram origem às crónicas semanais, num estímulo de Ferrante às ocasiões com que somos confrontados no dia a dia deste «(…) mundo em que nos aconteceu viver».

Fala-nos, de súbito, das primeiras vezes. E da sua eloquência, por se permitirem ficar na ribalta da memória, como um invólucro do sagrado e com «(…) a potência do irrepetível». Fala dos medos que acumulamos e que muitas vezes queremos impreterivelmente combater por nos faltar a coragem de nos imaginarmos na figura enfraquecida do amedrontado. Traz numa outra crónica o riso, assumindo: «(…) o que me parece cómico não faz rir ninguém». Como mãe que é, fala da gravidez e da evidência de que os filhos mudam tudo, desde logo «(…) a ordem hierárquica das nossas vidas». Numa atitude muito firme, consolidada, advoga diferenças entre mulher e homem. «O “demasiado” de uma mulher produz violentas reações masculinas e, além disso, a inimizade de outras mulheres que são quotidianamente obrigadas a disputar as migalhas dos homens. O “demasiado” dos homens, em contrapartida, gera admiração e lugares de comando.» E prossegue, em tom contundente, lembrando que «(…) depois de um século de feminismo, não conseguimos ser nós próprias até ao fim, não nos pertencemos».

Fala das filhas, fala da mãe. Do tabaco, das insónias. Comenta com ironia as mentiras, o silêncio, as reticências e os pontos de exclamação e vislumbra com encantamento a Nostra Signora de la Soledad, uma obra do século XVII, de um anónimo (lá está), que visita repetidas vezes em Nápoles. Ferrante recupera a diferença entre «exercitação escolar» e aprendizagem. O que memorizava para brilhar e que não lhe causava qualquer sabedoria. «Tive de deixar de ser estudante para recomeçar bruscamente a aprender com assombro». Com a argúcia de um aprendiz, Ferrante fala do desconforto de falar em público e do conforto de se escudar na estruturação da escrita. Fala das entrevistas, que dá à distância da tecnologia. Das despedidas, que a consomem. Da sinergia entre o livro e o filme, o filme e o livro. Das plantas, que ama. Dos estereótipos, que parecem encerrar com mesquinhez tudo o que é e não é, mas que feitas as contas condensam e bem o que é. Fala do ciúme. De morrer jovem. Fala do talento, que defende dever ser trabalhado para evitar ser “só” matéria-prima.

Recordando que nem sequer Homero alguma vez fora novo, Ferrante reclama para a escrita de qualquer escritor o meritório «(…) reordenamento do material literário que o precede», deixando cair por terra toda e qualquer presunção de originalidade ou criação a partir do zero que possam tentar afigurar-se. É uma espécie de grito sobre a forma como, com base na tradição e no background (como agora se diz) a que não se é alheio, se advoga a individualidade. E Ferrante prossegue inspirando, penetrando na nossa alma de leitores à procura de um sentido sempre maior para o ser humano, com sustentação na resposta firme que a literatura irrevogavelmente apresenta. E que neste livro de crónicas se faz também repercutir nas fantásticas ilustrações do artista italiano Andrea Ucini.
A Invenção Ocasional, num registo de quem como Ferrante tem a urgência da escrita e a humildade para inspecionar e vigiar a própria qualidade, é uma síntese prodigiosa desse propósito maior de entregar um sentido e ajudar «(…) a olhar sem demasiados filtros a condição humana».

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