Já aqui assumi a minha paixão por livros sobre literatura. Através deles, fazemos descobertas extraordinárias e ganhamos referências fundamentais para escolher as nossas próprias leituras. Entre 2013 e 2014, Alfabetos, do romancista e ensaísta italiano Claudio Magris, vinha não raras vezes recomendado nas publicações da especialidade, a estimular essa minha inquietação pelos livros que falam sobre os outros livros e os seus autores. Comprei-o e li-o de uma assentada.  

Alfabetos, que o autor dedica à própria mãe, reúne textos publicados entre 2003 e 2013 em órgãos de comunicação social europeus credíveis, com destaque para o Corriere della Sera, com o qual Claudio Magris colaborou com maior frequência. Apontado como um dos candidatos ao Prémio Nobel da Literatura, Claudio Magris é um dos mais conceituados escritores europeus, com contributos dados no conhecimento literário da cultura europeia. E é esse conhecimento que esta compilação de publicações retrata, embora Alfabetos se torne tão interessante também por revelar a própria identidade literária do autor: «Por vezes pergunto-me de que lado estou, se a minha história é aquela contada em Guerra e Paz ou na Metamorfose de Kafka, ou quem sabe, no Auto-de-Fé de Canetti».


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Seja como for, Alfabetos surge sobretudo a mapear a história da literatura ocidental, pela mão de um autor que parece já ter lido tudo. É desconcertante! Tanto mais porque transmite uma consciência muito clara da importância de ler: «(…) Borges disse que deixava aos outros vangloriarem-se dos livros que tinham escrito e que a sua glória consistia antes nos livros que havia lido».     

Da Ilíada à Odisseia, passando pelo Antigo e o Novo Testamento, a Crítica da Razão Pura… Os poetas, os russos, os humoristas, os historiadores, os cientistas, os títulos franceses, alemães, brasileiros, chineses… Tudo! Há desde logo uma obra à qual atribui uma importância incontornável: «A Bíblia (…) e a tragédia e o mito grego continuam, de facto, a fornecer as chaves e as imagens para compreender quem e o que somos, a culpa e a salvação, o exílio e o retorno». Vai mais longe nesta apologia ao recordar Brecht (a quem se refere como «um dos poucos escritores realmente clássicos do século XX»): «Na Bíblia, encontrava um alfabeto para ler o mundo».


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Ao mapear títulos nevrálgicos da literatura, Claudio Magris recupera também neste livro Alfabetos os grandes temas de que os clássicos – que define por «textos fundamentais e universalmente conhecidos» – falam: «Como escreveu numa página notável Karl Rahner, o teólogo jesuíta: numa vida vivida a fundo, a morte não é a sua acidental interrupção, mas o seu cumprir, a meta da viagem». Também sobre a vida, diz: «A vida, disse Sábato, faz-se no rascunho, sem possibilidade de a corrigir e passar a limpo». Recorrendo a Goethe, faz uma outra abordagem comum na literatura: «A melancolia (…) é a incapacidade de amar a repetição que pauta a nossa existência (as estações, o dia e a noite, os afazeres e hábitos quotidianos, o suceder das gerações) e de usufruir das inumeráveis e surpreendentes variações que cada aparente repetição diária – na realidade sempre nova e aventurosa – contém». Outra questão primordial levantada por Claudio Magris é subjacente a Ulisses (ao de Homero e ao de Joyce): «A grande pergunta que um Ulisses sente dirigirem-lhe e dirige a si próprio é se ele, atravessando o mundo e a existência, pode voltar a casa, a Ítaca, ou seja, a si mesmo (…)».  

Em Alfabetos, Claudio Magris identifica, assim, a importância e materializa a dimensão de autores fundamentais na literatura: «Além de Faulkner e de Márquez, ocorre outro grande criador épico, Guimarães Rosa». «Mo Yan é um dos grandes; um dos escritores mais fortes, criativos e arrebatadores da nossa época». «(…) nas Memórias de Adriano, Marguerite Yourcenar não inventa qualquer detalhe nem qualquer figura, mas reinventa e recria tudo (…)». Ao nomear os autores, Claudio Magris não perde de vista o papel estruturante dos livros (leia-se, dos bons livros): «Um livro, dizia Kafka, deve atingir-nos como um punho, deixar uma marca profunda, mudar – ainda que impercetivelmente – a vida do leitor».


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Nos inúmeros textos reunidos em Alfabetos, o nome de Brecht surge variadíssimas vezes e é com uma delas que concluo: “Como disse Karl Valentin, o genial artista de cabaré admirado por Brecht, «em tempos, o futuro era muito melhor»”. Será por isso tão fundamental submergir na literatura, à qual Claudio Magris reconhece uma função vital, uma questão de vida ou de morte. Vamos lá ler.

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