Neste almoço em que a família Nabeiro se junta, num domingo que não é mais um domingo, são celebrados os 90 anos de Rui Nabeiro, figura incontornável no país e no mundo por ser antes e em primeiro lugar um homem irrepetível em Campo Maior. Quando um dia assistiu a uma entrevista dada pelo escritor José Luís Peixoto, Rui Nabeiro entendeu ser esse o autor certo a quem pedir que escrevesse sobre si a história de uma vida. Ver chegar os 90 anos pressupõe, provavelmente, saber olhar para trás e revisitar memórias para um legado arrumado para o futuro que vem. José Luís Peixoto acedeu ao desafio com uma contraproposta: uma biografia romanceada. É assim que nos chega às mãos este livro que se lê de fio a pavio, Almoço de Domingo.

Talvez a razão mais íntima pela qual Rui Nabeiro sentiu necessidade de deixar escrita a sua história se encerre nesta ideia prodigiosa de José Luís Peixoto: «O passado tem de provar constantemente que existiu. Aquilo que foi esquecido e o que não existiu ocupam o mesmo lugar». E talvez também por saber que com a idade vem a sabedoria: «Sabia que envelhecer é acumular dores».

Ao longo da narrativa que arranca a par e passo com uma infância de desassossego numa família que luta pela sobrevivência, o autor vai atribuindo ao balanço de vida de Rui Nabeiro, a quem se refere como o senhor Rui, várias, muitas, imagens sobre Alice, a mulher, figura eixo. Também do pai terá ficado um ensinamento valente: «Ser patriarca é, em grande medida, sobreviver». Mas para Rui Nabeiro o destino estava talhado com outros traços, porque assim é «o feitio da vida». Construiu um negócio centrado em três produtos: café, vinho e azeite. E tinha um desígnio: «hei de ser um rico diferente dos que há por aí».

Damos por nós a assistir ao «enterro do fascismo»; às diligências que deram origem ao fim da atividade de Rui Nabeiro como presidente interino da câmara de Campo Maior, devido ao facto, percebemos mais adiante, de ter sido recebido por Marcello Caetano; à fundação da Delta; à inauguração da ponte sobre o Tejo; ao cozido de grão oferecido simultaneamente a Mário Soares e Felipe González; a alguns doutores, «desde o mais evoluído até à maior besta quadrada»; e ao título de comendador, Ordem Civil do Mérito Agrícola, Industrial e Comercial.

Ficamos também com a perceção do que pode uma vida de 90 anos acrescentar à noção de tempo. «Quando acumulamos suficiente tempo, os domingos transformam-se num período da vida. Recordamos os domingos como uma unidade». E, também por isso, porventura, o domingo em que são celebrados os 90 anos de Rui Nabeiro tenha chegado como um marco simbólico da importância de ser domingo. Tiritando entre as fronteiras que separam a realidade recordada e a ficção, assistimos a um homem com visão, humildade e valores inegociáveis. «Se vendermos o tudo, não há quantia que nos sirva, não teremos uso para lhe dar».

José Luís Peixoto teve, para chegar a este livro, um conjunto de conversas com Rui Nabeiro. Levou para esses encontros olhos e ouvidos. Um pensamento que escolheu uma direção. E a sua poderosa capacidade de encenação literária. Critérios que se juntaram à irreverência de Rui Nabeiro ter aceite a ideia de uma biografia através de um romance. Porque, no final das contas, a sua vida dava um livro.

Consolidamos, com esta história, que por «haver lições que só se aprendem depois de uma vida inteira», este livro tinha mesmo de ser escrito. E que mesmo «depois de uma vida inteira» há tempo à frente.

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