Anoitecer no Paraíso foi-me oferecido por uma amiga no meu aniversário e encontrava-se na minha estante à espera de um ímpeto, de um fôlego para o ler. Estamos perante uma coletânea de contos reunidos por Mark Berlin, um dos quatro filhos de Lucia Berlin, autora até há pouco tempo na escuridão e só descoberta com o primeiro título que veio a público, Manual para mulheres de limpeza.

Em cada um dos 22 contos, Lucia Berlin vai com mestria conciliando o seu olhar clínico para a beleza e, simultaneamente, para a dor, chamando a atenção para uma rotina que, como na sua própria vida aconteceu, se faz do belo e do ruim. Do bom e do mau. De alegria e de sofrimento. Até aqui tudo bem. Nada de novo em relação às nossas próprias vidas. A diferença introduzida por Lucia Berlin está numa honestidade desarmante e no magnetismo evidente das suas personagens, tão próximas do que podemos ser nós próprios e ver nos outros. Lucia Berlin retrata, a partir de contextos sombrios e de profunda escuridão, uma apologia da beleza. Surge-nos como uma mulher nómada, cujo olhar, treinado para ver em vez de olhar, nos permite uma partilha de testemunho de vida carregada de ação e sentido. Por trás, o sonho americano. A vida na estrada. A busca de um trilho melhor. Apesar das falhas. Dos casamentos mal sucedidos. Dos empregos de sobrevivência. Dos pretextos de circunstâncias, sem grande propósito.

«– Ouve, meu filho, as instruções de teu pai e não desprezes os ensinamentos de tua mãe, pois serão uma coroa de adorno para a tua cabeça e um colar para o teu pescoço». Eis a primeira interlocução, no primeiro conto. Corria 1943, o ano em que, segundo vai lembrando a autora, se ouvia falar muito de guerra. Ao longo dos vários contos, vamos sendo confrontados com famílias que não falam, desestruturadas, conflituosas, atípicas, itinerantes. Do tempo em que as crianças tinham a rua toda para elas e as suas brincadeiras. Sobre as crianças recolocadas por força da vida dos pais em diferentes destinos, Lucia Berlin fala-nos menos do facto de estarem «sempre num sítio novo» e mais do «facto de se adaptarem tão depressa e bem». Este é também o tempo em que «as raparigas saíam com homens muito mais velhos do que elas». Os campos de minas nos Estados Unidos surgem em muitas das conversas das suas personagens tão próximas do que Lucia Berlin foi. E sobre o ser vemos pela frente, ainda que passando entre os pingos da chuva, uma ou outra formulação mais existencial e filosófica, entre álcool, drogas e percursos duvidosos. «Pergunto-me se alguma vez vou justificar a minha existência». «Como é que vou aprender quem sou?»

Este é também um tratado sobre a condição da mulher, a forma como vive o casamento e assume a conciliação entre as vertentes tão amplas da vida. Os filhos. O estudo. Os livros lidos. Os autores. As ideias. A «sensação de impermanência». E eis que este é também o reflexo da vida como ela é. E também, de forma completamente transparente, o espelho da própria Lucia Berlin. Cujo lugar merecido na literatura ficou aquém do seu valor. Valeu-lhe a ideia, percorrida por Mark Berlin, o seu filho que coligiu os 22 contos, de que «a história é que conta».

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