Em dois domingos diferentes, um no passado janeiro frio e outro neste março solarengo, levantei-me bem cedo e fiz de conta que estava numa cidade lá fora. Fui fazer aquilo que tantas vezes, sempre que viajo, digo que faço e depois protelo, protelo: visitar Lisboa com olhos de primeira vez, como se de uma cidade estrangeira se tratasse. Não é esta a cidade que deveria conhecer melhor? É a minha, afinal… Nesses domingos, foi o que fiz. Comecei pelo Bairro Alto.

Comigo seguiam várias outras pessoas, dos 8 aos 60 (mais ou menos), com a mesma curiosidade, o mesmo sentido de observação. E, a guiar-nos, um investigador de temas olisiponenses que, no âmbito do projeto Falar Global do Colégio Campo de Flores, dá a conhecer a miúdos e graúdos a história e estórias da cidade de Lisboa. Que nos levam a olhar para a cidade, de facto, com a beleza e o impacto do primeiro olhar. A este especialista, também professor, todos tratam por Prof. To Zé. E é para quem os mais novos olham com uma devoção extraordinariamente admirável. Num jeito pedagógico invulgar, o Prof. Tó Zé lança bases de reflexão e de construção das ideias e do pensamento que nenhum dos presentes, dos 8 aos 60, ousa desperdiçar. Pelas ruas largas do Bairro Alto assim seguimos. E assim descobrimos… um bairro novo, para além da polvorosa dos copos e da noite.

 

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Embora do ponto de vista urbanístico seja o primeiro bairro moderno (digno desse nome) a surgir em Lisboa (século XVI), o Bairro Alto conquista uma classe média consolidada apenas no século XIX. Até então, ergue-se em contrastes, casas humildes, palácios e conventos, como os Inglesinhos, o Hospital de St. Louis e os Cardaes. Pouco espaço sobrou depois, dada a quadrícula inicial, que estava completamente balizada, sem margem para crescimento. Foi sempre uma incontestada recomendação para boas casas de pasto, armazéns de azeite e vinho, tradição de alguma forma ainda mantida. Também a imprensa foi, a partir de determinada altura, vista como uma das referências do Bairro Alto. É aliás o bairro dos jornalistas (embora já o tenha sido com maior intensidade), os mesmos que foram alimentando a vida dos botequins, das tabernas, das baiucas, dando vida e cor ao bairro. E, simultaneamente, associando ao bairro a imagem e a perceção da liberdade de expressão e de pensamento, que aos escritores também diz respeito. Das alusões de Vitorino Nemésio, no seu Mau tempo no canal, à boémia, às tascas de marinheiros e lugares de má fama, foram assim somando ao Bairro Alto tantos outros mundos, ambientes e cheiros, recantos, a enfatizar os contrastes que prevalecem desde o século XVI, quando nasceu em Lisboa.

 

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No Bairro Alto não encontramos vielas, becos ou betesgas. É aliás de uma qualidade superior, com ruas muito largas (pouco comum para a sua época de fundação). Puro Império, o tempo de D. João III. Era esta de resto a fonte de financiamento do Bairro Alto e o que lhe concedia uma enorme nota de prestígio, com enfoque no Convento de São Roque. Eram os jesuítas que davam à época notoriedade ao Bairro Alto. Mas as casas requintadas, notámo-lo bem, surgem no bairro em alternância com as mais populares e humildes, a desenhar um interessante equilíbrio pictórico, entre as mais de 30 serventias (saídas) existentes. Rapidamente nos posicionámos nas ruas que permanecem desde o início e que, por isso, transmitem um impacto histórico sentimental e simbólico inquestionável: a Rua das Gáveas, a Rua do Norte e, para além das ruas, ainda a Travessa da Espera. Também a Travessa dos Fiéis de Deus, uma das mais típicas do Bairro Alto. Qualquer um deles com toponímia alusiva ao mar, uma característica do Bairro Alto inicial.

Quando nos afastámos em direção à Rua do Século, demos de caras com a casa onde nasceu em 1699 Marquês de Pombal, a quem Lisboa deveu a reedificação da cidade após o terramoto de 1755. O mesmo terramoto que destruiu uma ópera importantíssima, na qual foram representadas peças de António José da Silva, o judeu, e cujas memórias podemos respirar no Bairro Alto, na Rua Luísa Tody, onde a própria Luísa Tody passou os últimos dias da sua vida. Tudo o resto é mais recente, já do século XIX, altura a partir da qual a imprensa começa a ter no bairro um papel preponderante. A Rua do Diário de Notícias, por exemplo, que antigamente se chamava Rua do Carvalho, perdeu a toponímia ligada ao mar. Foi nessa rua que nasceu em 1864, precisamente, o Diário de Notícias, primeiro projeto jornalístico em Portugal para todas as bolsas, todas as inteligências, classes e instruções (com conteúdos generalistas), sem conotações políticas ou ideológicas, de leitura acessível. Os seus fundadores, o jornalista e escritor Eduardo Coelho e o industrial tipográfico Tomás Quintino Antunes, seriam responsáveis não só por enraizar no Bairro Alto a primeira sede de um jornal emblemático, mas também por atribuir ao bairro na sua globalidade a fama (e o proveito) de lugar de liberdade, frequentado por jornalistas, homens de cultura. Aos quais se juntavam artistas e atores residentes no São Carlos, no São Luís, na Trindade. Era no Bairro Alto que pernoitavam, nas noites animadas pela boémia e as gráficas várias. E aos quais se juntavam ainda escritores… Numa outra ponta do bairro, já a escapar às ruas mais feéricas e com o Conservatório de Lisboa pelo meio, encontrámos na Rua João Pereira da Rosa uma célebre casa que foi ao longo dos anos habitada por tão prestigiados escritores, como Ramalho Ortigão, Fernanda de Castro, Ofélia Marques, José Gomes Ferreira, confirmando a ênfase cultural do Bairro Alto.

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Até aos nossos dias foram permanentemente sendo aproveitadas as casas de pasto, os botequins, os restaurantes, as casas de fados. E isto é muito do que hoje se conhece do Bairro Alto, que assume ao nível da diversão noturna um papel proeminente. Mas, vimos, nem só de boémia se faz (e se fez) o Bairro Alto. Boémios, escritores, jornalistas, atores e gente com posição foram compondo o bairro ao longo dos séculos. Nem só da traça humilde se faz (e se fez) o bairro. São muitos os palácios e os sinais exteriores de estimulante ostentação. Bem perto do Hospital de St. Louis, onde morreu Fernando Pessoa em 1935, e por onde passámos, há uma coluna exuberante a fazer sobressair essa riqueza, com bolas ornamentadas e extravagantes. E, depois, por tantos outros caminhos do bairro encontrámos a marca do conhecimento científico e da representação estatal. Terminámos precisamente na Academia das Ciências de Lisboa, uma das mais antigas instituições científicas nacionais (fundada em 1779), com um cheirinho ainda do Palácio Ratton, onde opera o Tribunal Constitucional, e do Convento dos Cardaes, na Rua de O Século, também alusiva à imprensa fundada no bairro. Que contrastes o Bairro Alto tem.

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