Já contei aqui que, há dias, quando me vi na Feira do Livro de Lisboa, acabei a comprar um conjunto de livros da premiadíssima Lídia Jorge, cuja escrita foi das melhores descobertas que fiz este ano. Li, pois, em meia dúzia de dias, os livros comprados e tenho vindo a deixar, aqui no Entre | Vistas, as respetivas impressões. Comecei pel’O Organista, passei a Instruções para Voar e, hoje, deixo pistas sobre O Amor em Lobito Bay, um aglomerado de nove inquietantes contos.

Este livro de Lídia Jorge torna-se mais empolgante à medida que vamos lendo sobre a escritora e descobrindo a importância que para ela tem o conto, pela sua aproximação à fórmula poética, à música, à capacidade de dizer o essencial através de um reduzido número de palavras, com a liberdade e a destreza de pensamento que a síntese opera.

O Amor em Lobito Bay propõe para cada conto, à partida aparentemente inofensivo, quer uma inquietação, quer uma clarificação, redundando numa espécie de parábola que permite a partir de experiências inaugurais chegar a graus de sabedoria maiores. Parece haver por detrás de cada um dos nove contos uma importante, mas despretensiosa lição. Para lá chegar, Lídia Jorge recorre invariavelmente a um espaço longínquo, uma revelação surpreendente e incontestável, num desafio transcendente à vulnerabilidade da memória. Pelo meio, em cada um dos contos é narrada uma história de amor, no amplo sentido do termo, ao mesmo tempo que são confrontadas a confiança e a esperança com a evidência da desordenação em que a vida tem vindo a acomodar-se.

No conto que dá o nome ao livro, numa viagem à paisagem africana de outros tempos, a autora recupera uma pureza extemporânea aos nossos olhos de hoje: «No nosso mundo, nem havia vencedor. Apenas havia corredor. Corredor de fundo. Ser e pertencer, essa era a única ordem implícita na competição em desordem que nos envolvia». Num outro conto, “Overbooking”, acontece inesperada e improvavelmente o impossível: «Éramos catorze e não cabíamos na 4L, mas queríamos que fosse possível, e nós tínhamos acabado de fazer o impossível (…)». No terceiro conto, “O Tempo do Esplendor”, Lídia Jorge adiciona-nos mais um cenário espaciotemporal longínquo: «Era o tempo das grandes casas para três pessoas, o tempo das criadas, o tempo da água não canalizada, o tempo de uma lâmpada só a balouçar do tecto, o tempo dos jardins domésticos com lagos e peixes vermelhos, o tempo dos professores de Latim como era o meu pai». Na “Imitação do Êxodo”, quarto conto, é feito um inventário sobre o que às crianças deve ser ensinado e dado a ver: «Devemos levar as crianças ao encontro da Natureza, de outra forma elas ficam entaipadas entre casas e cercas e julgarão que o mundo é finito». Num conto à frente, surgem de rompante considerações sobre as coincidências: «A divagação sobre a coincidência é a filosofia dos pobres». Num outro, ainda, o impacto da distância sobre o nosso autoconceito: «(…) quanto mais nos afastamos de casa mais nos aproximamos da nossa verdadeira morada». No oitavo conto, “Novo Mundo”, Lídia Jorge lança a pergunta: «O que seria a vida se não fosse o frémito do suspense?». No penúltimo, o «(…) espavento desorbitado de artistas enlouquecidos nos fornos do glamour e nos púlpitos da fama» surge a inquietar uma dama polaca em plena viagem numa limusine preta. No último conto, “O Poeta Inglês”, é dado destaque a um clube literário unido pela força das palavras e pelo tamanho de um molho de chaves.

Falamos de nove contos que, relevando contextos específicos de desencanto e desamparo, dão ao mesmo tempo lugar ao esclarecimento, à construção da memória e da identidade, à pacificação, à reconstrução do tempo e à possibilidade de começar de novo. O Amor em Lobito Bay consiste, a meu ver, numa fundamental recapitulação da esperança.

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