Velhos Lobos. Este livro que o autor dedica com supremo amor ao seu filho Manel é narrado a partir do fio da memória de um rapaz, Sebastião Velho, dedilhado sobre o tempo entre a infância num lugar remoto e a sua vida adulta, num regresso ao lugar de origem, então ainda mais esconso. Mas assente, ainda assim, na resistência do cadeireiro em que se torna e cuja estrutura basilar de trabalho é esse trançar da verga que resiste ao tempo e que aqui, laboriosamente, parece acomodar toda a narrativa que se emaranha, verosímil aos nossos olhos.

Aí, com a distância permitida pelo tempo, numa cadeira suturada com as próprias mãos e a filigrana da vida torta que teve, demora-se a olhar para trás, com os olhos postos no pai. E no seu legado. Ente um ponto e outro, Carlos Campaniço transporta-nos ao longo de quase 300 páginas para um lugar campestre, longínquo. Que ainda que não seja nosso, individualmente, é o lugar ao qual afinal todos pertencemos: a humanidade. Como ela é. Com os temas que nos atravessam enquanto homens e que Homero, Vergílio, Aristóteles, Shakespeare, Joyce, Camões, Pessoa… gravaram com as palavras que a História guardou. É isso que Carlos Campaniço faz: não é propriamente o que ainda não foi feito. Mas é da mesma raiz daquilo que os melhores já fizeram: descrever o que somos, como se de fora nos visse. E para que ganhemos maior distância, manteve o centro da história nas comunidades rurais alentejanas, que parecem ter ficado ali naquele tempo narrado. Ou nem por isso.

Situemo-nos, pois, nesse «último lugar da terra», como refere o autor. Num Alentejo profundo do século XX, num tempo testemunhado pela guerra e as notícias esparsas trazidas pela radiotelefonia ligada, telegramas para o anúncio da fatalidade, automóveis em posse rara, contrabandistas de passagem ou refugiados espanhóis, temos uma herdade barricada pela linha fronteiriça entre a pobreza extrema (mas imperturbável) dos Velho, de um lado, no Montinho, onde nem se sabia como se evitavam os filhos; e a fortuna inigualável dos Lobo, no Monte do Azinhal, por outro lado.

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Duas famílias enrixadas pelos antípodas das suas condições sociais e económicas. Mas próximas e tingidas por um destino com planos fatais. Nos Velho, temos à cabeça Maria Barnabé, matriarca, com uma certa visão do mundo e poderes sobrenaturais, Jacinto Velho, vários filhos, a avó Rosa. Nos Lobo, o líder da família é o famigerado homem que não teve para sua infelicidade um filho homem, Francisco d’Almeida Lobo, a sua esposa, Teresa Avelar de São-Lázaro, o seu irmão Gaspar d’Almeida Lobo, as tias Rosário e Beatriz, a Esperança, nome da filha, nada mais do que isso. E uma montra de criadagem que impressionou uma nova mulher que chega, Lourdes de Crasto.

Ao permitir que entremos na ossatura das duas famílias desavindas, o autor revalida a frase de Hermann Hesse com a qual abre o livro: «Solidão é o modo que o destino encontra para levar o homem a si mesmo». À sua verdadeira essência, à sua interioridade. Àquilo que é. E no movimento de regresso de Sebastião Velho ao seu lugar de origem, lá está, damo-nos conta de quão essencial é uma frase do livro, referente a Jacinto Velho. «Nada lhe corria de feição: filhos, mulher e sogra, essa puta que era a ideóloga da insurreição, todos se mostravam ansiosos por uma vida nova, como se houvesse luxo mais procurado do que a liberdade de viver sem dono».

E a solidão é fio condutor no livro. É um fator de nivelamento, justicialista, se quisermos, das classes sociais díspares das duas famílias protagonistas. «O isolamento, concluía, e a falta de sociabilidade levaram até a mais polida das mulheres a ter desejos grosseiros, como este de pensar daquela maneira em alguém de uma classe social tão baixa». Outra frase que lemos no livro, a propósito da conduta de Lourdes de Crasto, uma mulher personificando a rocambolesca capacidade de tudo fazer para manter a posição social, com planos, estratagemas, fórmulas, umas certeiras, infalíveis, outras anódinas.

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Carlos Campaniço não nos revela tudo ao mesmo tempo. É aliás essa uma das suas ferramentas formais mais hábeis neste romance. Somos levados com maestria entre informações que nos são dadas em momentos cirúrgicos e no contexto dos quais ficamos então habilitados a compreender aquele ponto específico que ficara para trás e que nem suspeitaríamos estar ainda por contar melhor. Neste romance, todas as páginas são boas. Estava a meio da leitura e escrevi ao Carlos: «há neste teu livro um salto de qualidade enorme (um esqueleto narrativo escorreito, imaculado); uma consistência notável (todas as páginas são boas); uma imaginação prodigiosa (a saga montada de cena para cena é penetrante)». Sim, escrevi-lhe para lhe dizer isto. Porque o Carlos demorou a voltar a escrever. E em conversas idas que tivemos estremeci enquanto fiel ouvinte de desabafos sentidos sobre a escrita. Quis o destino que regressasse. Mesmo sem conhecer, claro, o futuro. E como «sempre se imagina muito aquilo que se desconhece», para usar uma frase deste Velhos Lobos, passou pela incrível criatividade literária do Carlos uma chance dada, de novo, à escrita.

E eis que estamos aqui. Hoje. Neste livro que a LeYa, com a Chancela da Casa das Letras, publica. E a mão experiente de Maria do Rosário Pedreira, cuja craveira levou a descobrir o talento do Carlos. Bem como a perseverança necessária para os momentos bons e os menos bons. Aqueles em que, como no desabafo que me foi feito, entendemos que às vezes é para parar. E eis que a vida nos traz aqui. Porque outros momentos há em que é para continuar. Porque é para ser. E foi.

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Fotografia com cortesia de Vitorino Coragem.

 

E volto ao tratado da humanidade. Neste livro que hoje temos nas mãos, Carlos Campaniço faz a partir de um lugar primitivo, «com o vagar com que ali se fazia a vida», um mapeamento declarado, ainda que aparentemente velado pelas diferenças das famílias, do que define a humanidade na sua génese e essência. Amores e desamores; casamentos e separações; fidelidades, traições, incesto e ciúme; suicídio, perdas e luto; subserviência e abuso de autoridade; tradicionais machismos e ignorância; poderes sobrenaturais, mau-olhado e crivos religiosos na conduta dos comportamentos; profano e sagrado; mezinhas e castigos dos céus. Mas, meu Deus, tanta religião e tanto dinheiro não pagam, dúvidas houvesse, nem saúde, nem honra, nem sentido de pertença. E também o sobrenatural é pedinte de consenso. E uma forte herança da avó Rosa, inclusive, decalcada em Maria Barnabé, recebe da filha Mariana uma crítica acesa: «Talvez devesse ter sonhos acordada. O que nos falta em casa é sonharmos as nossas vidas!». E até porque nem sempre Maria Barnabé obteve dos sonhos a certeza certa de como seria o futuro, tantas vezes incalculavelmente inóspito. Não errou, porém, na sua apologia de que «toda a turbulência da humanidade passava pela rua do Montinho».

Este livro Velhos Lobos é, estou profundamente convicta disso, como de resto toda a boa literatura o é, um retrato definidor do ser humano. A lembrar-nos que o que somos no nosso país, na nossa cidade, na nossa aldeia, sim, no nosso lugar remoto… é enigmaticamente um laboratório de aprofundamento do que somos universalmente. Do que a humanidade é.

Aquilo que somos genuinamente na nossa forma de ser e mesmo naquele lugar atrás de tudo… é o que nos torna verdadeiramente globais. E com uma enorme probabilidade de o nosso lugar no mundo ser definido por isso mesmo: aquilo em que somos únicos. Mesmo nesse sítio que nem a Biblioteca de Alexandria, essa sobejamente obra-prima de papiro, pensou poder existir um dia: o Montinho, aonde Sebastião Velho regressa para se dar conta de como todos os passos do passado contaram para esse cálculo já feito que o futuro traz.

E que parece, e assim concluo, sair das entranhas da cadeira de Sebastião Velho, feita com as mãos. Porque as mãos, afinal, sabem muitas coisas. E as do Carlos foram exímias a juntar as palavras que trançaram as cadeiras. E quem sabe se a partir delas não nasce uma nova história, como acontece com tudo o que se entrelaça e funde.

[Meu texto que serviu de suporte à conversa com o autor, Carlos Campaniço, e a editora, Maria do Rosário Pedreira, no contexto do lançamento do livro Velhos Lobos]

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