Este foi o ano em que lancei o meu próprio livro, As Perguntas que Somos, uma coletânea de 34 entrevistas a líderes com uma ampla representação disciplinar, etária, geográfica e de género. Não desacelerei, ainda assim, a leitura de outros livros, até porque para a preparação de várias das entrevistas foi necessário ler ou reler títulos relevantes dos diferentes autores que me permitiram treinar-me nesse exercício de perguntar, voltar a perguntar, perguntar melhor. Pelo menos assim o desejei.

Este foi também o ano em que, na qualidade de mentora e fundadora do Entre | Vistas, recebi o convite para apresentar o livro Velhos Lobos, de Carlos Campaniço. O desafio veio simultaneamente do autor e da LeYa, pela mão da sua editora Maria do Rosário Pedreira, cujos olhos continuam com perspicácia a mapear o que de bom se faz na literatura e cujos contributos próprios na escrita, desde logo na poesia, nos permitem, a nós leitores, saber por onde ir nessa viagem que é ler. E na Livraria LeYa Buchholz, que nos acolheu para o lançamento, lancei-me numa leitura da minha leitura do livro deste autor, o Carlos, que tem em comum comigo, para além de uma amizade vinda de sempre, as origens nesse Alentejo fronteiriço. Velhos Lobos, o livro que lançou, dedicado com supremo amor ao seu filho Manel, é narrado a partir do fio da memória de um rapaz, Sebastião Velho, dedilhado sobre o tempo entre a infância num lugar remoto e a sua vida adulta, num regresso ao lugar de origem, então ainda mais esconso. Mas assente, ainda assim, na resistência do cadeireiro em que se torna e cuja estrutura basilar de trabalho é esse trançar da verga que resiste ao tempo e que aqui, laboriosamente, parece acomodar toda a narrativa que se emaranha, verosímil aos nossos olhos.

Em 2022, fui também desafiada para apresentar o livro este ano lançado por João Neto, Correr sem Limites. «Corro para ser eu». Começo por citar o autor. Neste seu livro tremendamente honesto, nas passagens pessoais, profissionais e desportivas, em todas; no seu tom cinematográfico que nos prende, entre as opções bem geridas de ir atrás, quando necessário, para contextualizar etapas; com dados lançados sobre o seu caráter, em primeiro lugar, os seus valores, a sua cosmovisão, o lugar no mundo que reclamou para si, à custa de trabalho e dedicação, sem espaço para violar os alicerces em que nasceu a sua vida e que vêm de um património familiar, os valores invioláveis, mais uma vez; com dados lançados sobre a capacidade de sonhar, de deixar uma marca, ir além do imaginável sem olhar à qualidade do que é possível ou impossível, porque essa medida depende da sua vontade e a sua vontade, é evidente ao lermos, é maior do que o Evereste, a montanha mais alta do mundo, que subiu, num palmarés que inclui 30 maratonas em alguns dos lugares mais remotos do planeta; com dados lançados sobre, mais do que a superação, a transcendência, o toque naquele outro lado que o comum dos mortais não toca por nem lhes ocorrer existir, quanto mais… É a inspiração deixada a dois filhos extraordinários que têm a matéria prima fundamental para chegar longe: o exemplo colossal do pai. Um exemplo de superação, mas fundamentalmente um exemplo de ser humano, que corre, e volto a citá-lo, «para ser eu». E é.

Mas vamos aos restantes livros que li e por ordem mais ou menos cronológica. Comecei o ano, naqueles primeiríssimos dias de janeiro, a ler As Inseparáveis, de Simone de Beauvoir. Duas meninas, mulheres. Desenhadas na narrativa ao correr da pena pela própria autora, a inconfundível escritora francesa, que é também uma dessas meninas mulheres. E é nesse duplo papel que a escritora nos conta uma história que nos prende declaradamente, reportando a 1954. O livro As Inseparáveis, que inclui também um património documental, com cartas e fotografias da autora, consiste num elemento de enorme valor literário e, simultaneamente, uma chave mestra para a interpretação de Simone de Beauvoir e da sua obra.

Segui depois para Os Filhos da Madrugada, que colige as 26 entrevistas conduzidas por Anabela Mota Ribeiro em 2021, no contexto de um programa de TV que concebeu para a RTP com o propósito de que o tempo não dissipe a memória, que é coletiva, da fundação da democracia. Dois critérios estiveram na base da escolha dos entrevistados: terem nascido após 1974 e terem uma história com «merecido reconhecimento público». A declaração da autora é perentória: «Faz-se com mulheres e homens que trazem as marcas do passado, a pobreza, o medo, tudo aquilo que não desaparece de um dia para o outro, e com a alegria do combate, a esperança, uma energia nascente».

Mais tarde, li Quarenta e Três, de José Gardeazabal, que tive a oportunidade de entrevistar este ano. Neste livro, que mereceu uma Menção Honrosa no Prémio Literário Ferreira de Castro, assistimos e quando damos por nós somos parte de uma «viagem pela literatura universal». Porventura, à procura do amor. Do sexo? Ou não. Ou de uma suspeita de que entre os dois e o mundo, entre os três, a relação é triangular e imperfeita. Não me esquecerei que comecei a lê-lo à saída da segunda vacina contra a COVID-19 e numa espécie de convalescença entrei na leitura boquiaberta, pela diferença do estilo, do tom e do conceito de escrita. Incrível este autor, premiado já em vários dos seus títulos, pela originalidade, a abordagem, o território e a amplitude culturais. A rede em que José Gardeazabal suporta este livro é a sua cultura literária. E eis que a partir da página 43, sempre a 43, de 36 grandes obras, segue desenvolvendo o seu próprio romance. Este Quarenta e Três, lá está. Também de José Gardeazabal, e justamente para preparar a entrevista que lhe fiz, li Penélope Está de Partida, com um contraponto entre a Penélope que espera Ulisses regressado da Guerra de Troia e a Penélope que está (neste livro de poesia) de partida; e, ainda, Da Luz para Dentro, um livro que, segundo o autor, «luta contra a morte e até a politização da intimidade, e trabalha com palavras esparsas esse velho milagre que é o encontro dos corpos e das almas. Ao mesmo tempo».

Em pleno verão, quando andava embrenhada na introdução do meu livro, fui inspirada pela leitura de um belíssimo tratado sobre as coisas palpáveis, como os próprios livros, e as coisas fugazes do digital. Vocacionado quer para quem nasceu na era anterior ao digital, quer para os nativos da Internet, o livro Não-Coisas, do filósofo germano-coreano Byung-Chul Han, consiste numa reflexão fundamental sobre a fugacidade das coisas, ou seja, a transição da era das coisas para a das não-coisas em que o autor acredita estarmos, nesta atualidade em que consumimos informações como se “apenas” estivéssemos a respirar. O que o autor analisa, aqui, é uma «impercetível mudança de paradigma», centrada na passagem da posse para o acesso. Verdadeiramente imperdível.

De vários momentos de poesia se fez o meu ano de 2022. Desde logo com três livros de Raquel Serejo Martins, escritora que entrevistei para o meu livro As Perguntas que Somos e que me foi apresentada através da nossa editora em comum, Virgínia do Carmo, fundadora da Poética Edições. Valsa a vau, Plantas de interior e Aves de incêndio são os títulos que li e que espantarão qualquer leitor de poesia, estou certa. Em qualquer um dos livros, o seu tema recorrente é, a mostrar pela poesia a vida como ela é, o amor e o desamor. E também o tempo e a forma como o ocupamos para sermos felizes (ou infelizes). A passagem do tempo parece ser um peso que a sua poesia retrata. E mais não digo. Porque está (quase) tudo na entrevista n’As Perguntas que Somos. Mas talvez valha a pena deixar aqui bem explícito que com Raquel Serejo Martins entramos nesse outro universo que não é o dia a dia; não é o comum e habitual; não é aquilo que já vimos. É outra coisa. Nova.

Li, vejam só o tempo orgulhoso que dediquei à poesia, O meu corpo humano, de Maria do Rosário Pedreira, de quem há pouco falava. Retratando várias partes do corpo humano, lá está, em jeito de poesia, umas vezes num tom sarcástico ou irónico, outras de uma forma bastante direta, permite-nos recolher a partir do corpo vários significados de uma intensa vivência humana, no âmbito da qual permanecemos carregados de emoção ao longo de toda a leitura.

Da autoria de Inês Fonseca Santos, li um livro bem pequenino, Suite sem vista, com uma capa extraordinária de Francisco Vidal, que tive a oportunidade de comprar na livraria Escriba, em Almada. Paredes de uma suite, folhas de livros, gavetas com palavras, são inúmeros os ambientes que nos transportam para um território que podia ser o de qualquer um de nós.

Dada a bibliofilia de que não me livro (e ainda bem – deu muito trabalho encaixar no meu dia a dia um ritmo consistente de leitura), acompanhou-me ainda e praticamente ao longo de todo ano o maravilhoso (é mesmo uma pérola) O Infinito num Junco, de Irene Vallejo. A escritora espanhola, nascida em Saragoça, a partir da sua paixão pela mitologia e a cultura gregas e romanas, escreveu este magnífico livro já traduzido em várias línguas e que retrata a história do livro, desde que se reproduzia arduamente em rolos de papiro, passando pela transformação absolutamente abissal de Gutenberg, até aos nossos dias e à convivência com o digital.

Terminei o ano lendo um outro livro sobre o livro: A religião dos livros, do alfarrabista Carlos Maria Bobone. Esta belíssima edição da Fundação Francisco Manuel dos Santos retrata a experiência deste autor, filho de outro alfarrabista, à volta dos livros, seus circuitos, ciclos de vida, interessados e interesseiros, integrando uma visão fundamentada sobre a vida dos livros (sobretudo os mais antigos e valiosos) e suas idiossincrasias, desde a famigerada Biblioteca de Alexandria à atualidade beliscada pela globalização.

Entro em 2023 a ler, de António Lobo Antunes, O Tamanho do Mundo. Veremos que tamanho tem, afinal. Boas leituras.

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