Através deste livro, A religião dos livros, da Fundação Francisco Manuel dos Santos e escrito por um jovem alfarrabista, formado em filosofia e filho de um outro alfarrabista, chega-nos às mãos uma homenagem ao livro, esse objeto que edifica o que o ser humano é. Sim, é um verdadeiro tributo ao livro, enquanto objeto sobrevivente entre gerações que conta o que tem dentro e, simultaneamente, dá um testemunho implícito sobre quem o guardou e lhe estimou a vida.
É também uma descrição fundamentada sobre a escala, o negócio e os circuitos numa cadeia de valor significativa (escritores, tradutores, revisores, capistas, paginadores, editores, transportadores, livreiros…), as mecânicas de acesso aos mais antigos e valiosos livros, as idiossincrasias de proprietários, os espaços finitos de bibliotecas e livrarias, a relação entre quem vende e quem compra, as estantes particulares de livros. Com o foco, em última análise, naquele ser para quem o livro afinal se destina: quem o lê.
Parte da «figura criada por Stefan Zweig, o Mendel dos livros» para se centrar num «modelo do livreiro» e segue com vários exemplos de livrarias, seus paradigmas e modos de vida, assumindo que está ainda por fazer a história das livrarias. Debruça-se sobre as bibliotecas e a forma testemunhada como muitas são organizadas, ao estilo da volúpia intelectual. E deixa várias notas relevantes, claro, sobre os livros raros e as livrarias em que podem ser adquiridos. «O mercado dos livros raros, como é um mercado de coleção, não de leitura, está dependente de tudo aquilo que torna o exemplar mais digno de nota». «Tudo aquilo que não é massificado, que pode interessar muito a poucas pessoas, contém um potencial que estas livrarias exploram».
Avança para uma ideia relevantíssima: «o papel cultural mais importante do livreiro está na criação do gosto». E, de facto, o gosto que temos pelos livros e a (nossa) vida à volta dos livros estão também enraizados nessa experiência de ir à livraria, interagir com quem connosco possa deixar um legado de conhecimentos e conhecimento sobre o paradeiro e o ciclo de vida dos livros que procuramos e daqueles que encontramos de surpresa. Como no «sonho infantil de gerir uma loja de doces», o livreiro apaixonado por livros tem o privilégio de «ser o primeiro a escolher». E vai mais longe: «Muitos dos leitores carregam consigo um impulso para a escrita que também é consolado pela frequência dos ambientes literários». Carlos Maria Bobone refere, a este propósito, o modelo incontornável da Shakespeare & Co., que se posicionou como a marca mais emblemática de uma livraria independente, mas também de um lugar literário em torno do qual se criaram e desenvolveram iniciativas com autores e outros agentes ligados aos livros.
A religião dos livros deixa-nos, ainda, uma visão otimista fundamental sobre a concorrência do digital. «Um estudo de 2008 previa que, em 2018, os livros eletrónicos superassem os livros em papel, mas sabemos hoje que em nenhum país do mundo estes ultrapassam os dez por cento da cota de mercado livreiro». Aliás, o digital veio até permitir ir além dos stocks possíveis nos espaços físicos, alargando a quantidade e a diversidade dos catálogos.
O que nos conta este livro é, em síntese, apontado como uma seta ao coração daqueles eternos amantes dos livros; aqueles para quem a chegada de um livro novo é um acontecimento absoluto; aqueles para quem o conhecimento de um livro antigo é uma disputa sem precedentes; aqueles para quem arrumar a estante dos livros é um ritual de precisão; aqueles para quem a vida sem ler não existe. Aqueles para quem, como eu, sofrem de bibliofilia, esse vício incorrigível que se entranhou.
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