Neste Água Viva, deparamo-nos com um dos livros porventura mais irreverentes do Brasil do século XX, talvez até o mais irreverente do mundo. Como o foi a própria autora. Neste livro, Clarice não conta uma história, nele não há enredo, longe disso. Neste livro, Clarice encarna através da narradora uma figura artística que pinta e que por portas travessas envereda pela escrita e a partir da experiência da escrita faz um retrato filosófico da vida, ou seja, «uma tessitura de vida». Melhor: do instante da vida, sendo esse o seu tema primordial: «(…) a vida é esse instante incontável, maior que o acontecimento em si (…)». «Cada coisa tem um instante em que ela é». Muitas as tentativas de dizer quão impronunciável a vida é.

Com deambulações, divagações e, até, tergiversações, Clarice dá ao livro a capacidade de abordar os sentidos, numa viagem sensorial que cria em nós a impressão de, repentinamente, podermos ouvir sons, ver para além do que está escrito, cheirar, tatear texturas e formas. Clarice procura por via da sua narradora pegar na própria matéria prima da escrita: «Quero como poder pegar com a mão a palavra». E é precisamente por intermédio dessa figura que narra Água Viva que Clarice se despe despudoradamente perante quem a lê: «Inútil querer me classificar: eu simplesmente escapulo não deixando, género não me pega mais». É neste livro que Clarice assume: «tenho a estranha impressão de que não pertenço ao género humano». Clarice vai mais longe e explica a razão pela qual não tem uma resposta para si: «Porque sou um a pergunta».

Água Viva é também um inventário sobre o tempo e os seus diferentes modos verbais: «Sou um ser concomitante: reúno em mim o tempo passado, o presente e o futuro». Mas é a partir do presente que o futuro se torna possível: «a invenção do hoje é o meu único meio de instaurar o futuro». Mas de um presente fugaz: «O presente é o instante em que a roda do automóvel em alta velocidade toca minimamente no chão». E imprevisível: «Algo está sempre por acontecer. O imprevisto improvisado e fatal me fascina». E mais imprevisível ainda: «Corro perigo como toda pessoa que vive. E a única coisa que me espera é exatamente o inesperado».

Neste livro em que se escreve ao correr da pena, Clarice transfere para a sua narradora uma incumbência que sabemos ser sua, por autoimposição: «Meu cansaço vem muito porque sou pessoa extremamente ocupada: tomo conta do mundo». Mundo esse que sabemos existir, não sabemos é onde: «O real eu atinjo através do sonho. Eu te invento, realidade». É assim Clarice.

Água Viva, Clarice Lispector 72

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